Patrocínio de Nossa Senhora do Monte 2022

09-10-2022

PATROCÍNIO DE NOSSA SENHORA DO MONTE

09 de Outubro de 2022


"Não têm vinho"

1. "Foi este o princípio dos sinais que Jesus realizou em Caná da Galileia; manifestou a sua glória e os seus discípulos acreditaram nele" (Jo 2,11). É deste modo que S. João nos convida a olhar para o relato do Milagre de Caná, indo além de o considerar como simples narração em que Jesus teria resolvido a situação incómoda daqueles noivos seus amigos.

O Milagre de Caná é, antes de mais, um sinal. Aliás, nesta narração, tudo nos é proposto como sinal: o banquete dos esposos é sinal do banquete nupcial de Cristo com a Igreja (sinal do banquete do Reino, aquele "banquete do Cordeiro" de que nos fala o Livro do Apocalipse), e para o qual somos felizmente convidados. Os esposos, os serventes, o chefe de mesa e a própria "Mãe de Jesus" (a "Mulher"), são outros tantos sinais da nossa humanidade, convidada para o banquete, para o encontro com Deus, fruto do seu amor por nós. E o vinho novo, vinho bom e abundante, que Jesus oferece, é sinal do sangue derramado na cruz, em que se realiza a nova Aliança no seu sangue.

O milagre de Caná diz-nos, assim, que nós, os crentes, somos o novo Israel a quem Jesus, na sua morte e ressurreição, oferece o vinho novo, de modo especial na Eucaristia. Por isso, o "Milagre de Caná" é o "princípio", o "primeiro" - ou melhor: é o "arquétipo" dos sinais de Jesus, cuja realização o evangelista situa, significativamente, no "terceiro dia", quer dizer: no dia da salvação.

A este sinal, haviam de se seguir tantos outros, indicadores desse outro grande sinal que é a Páscoa de Jesus (a sua morte, ressurreição e envio do Espírito Santo). Mas este primeiro sinal é também o arquétipo de todos os outros sinais que Jesus nos dá, constante e diariamente: sinais da sua presença ao nosso lado, que havemos de discernir e de acolher, deixando que nos convertam.

2. Por isso, neste relato de Caná, Jesus e sua Mãe são mais importantes que os esposos e os demais convidados para as bodas. Maria é-nos apresentada como "a Mãe de Jesus" e como a "Mulher". Ela é figura da humanidade nascida da "mulher"; e é, também, a corporização daqueles membros do povo de Deus que, na fidelidade e na esperança, aguardavam a vinda do Messias.

É a esta Mulher, a esta humanidade, a este povo, que Jesus pede que reconheça a sua primazia (que é a primazia de Deus): "Mulher, [...] ainda não chegou a minha hora". Como que dizendo: a plenitude dos tempos, a minha hora (a hora da cruz, a hora da Páscoa) não será decidida por mais ninguém (nem sequer pela "Mãe" ou, muito menos, pela "Mulher"), senão pelo Pai. Com efeito, tudo em Jesus, é espera, obediência, acolhimento e cumprimento fiel da vontade do Pai.

Mas esta "Mulher" que dá corpo às esperanças de toda a humanidade é, igualmente, a "Mãe de Jesus". É também nesta qualidade que ela se destaca por entre os demais convidados para a boda. Assim, antes de qualquer dos presentes se ter dado conta (mesmo antes daqueles que disso tinham a responsabilidade), a Mãe de Jesus apercebeu-se que faltava o vinho e logo confidenciou ao Senhor: "Não têm vinho".

Na cultura da Palestina de então, o vinho era, juntamente com o trigo e o azeite, um dos alimentos essenciais para a vida. Mais precisamente, era o sinal de alegria, prosperidade e abundância. É a falta desta alegria, desta prosperidade, que Maria apresenta junto de Seu Filho. A Mãe é a porta-voz de todos: "Não têm vinho".

Ela antecipa-se e não hesita em dirigir-se Àquele que pode modificar a existência humana. Sem Deus, com efeito, podemos existir mas "falta-nos o vinho", falta-nos o sabor, a esperança que nos permite olhar mais longe e perceber o sofrimento e as limitações (tal como as alegrias e conquistas) à luz da eternidade. Sem Deus, falta-nos a Vida em abundância! Movida pela fé, a Mãe de Jesus dirige-se a seu Filho na certeza de que apenas Ele pode dar solução à angústia do povo fiel e de toda a humanidade. Precisamos de receber, todos e sempre, a Vida abundante e boa, que apenas Deus pode oferecer.

Mas a Mãe dirige-se, igualmente, aos serventes, convidando-os àquela atitude tão essencial e central do discípulo: "Fazei tudo o que Ele vos disser" - atitude que o próprio Jesus haveria de ensinar aos seus por palavras e acções, como mostra a Oração que Ele ensinou: "Seja feita a vossa vontade, na terra como nos céus". Esta é a disponibilidade do discípulo, a disponibilidade do cristão: "Em tudo procurar a vontade divina para a pôr em prática", como resumiu, nos últimos momentos da sua existência na terra, o Beato Carlos de Áustria.

E eis que a água, esse elemento essencial da criação, usada também pelo povo do Antigo Testamento para se purificar antes de um acto sagrado, eis que a água se transforma no vinho novo, no vinho excelente do encontro entre Deus e os homens, aquele vinho abundante que nos oferece o horizonte da vida divina, da vida eterna.

3. Naquela noite de 8 para 9 de outubro de 1803, a água e as pedras foram abundantes nesta nossa Ilha. Lendo os relatos dos que viveram esses dias trágicos, tudo parecia desmoronar-se, dissolver-se na água que caía das nuvens e não cessava, levando consigo a terra e os homens!

Foi, segundo muitos, a mais severa calamidade natural que a Madeira sofreu ao longo da sua história, igualada talvez em intensidade meteorológica pela situação de 20 de Fevereiro de 2010, mas com um balanço muito maior de vítimas (estimam-se entre 700 e 1000 os mortos resultantes da tragédia - o que, nesse tempo, representava 4% da população da Ilha), e com a destruição de uma boa parte dos edifícios.

Nesse dia, uma vez mais, os madeirenses não hesitaram em dirigir o seu coração para a Mãe de Jesus, procurando nela socorro e conforto. Perante tamanha calamidade, desolação e dor (fazendo seu o grito de tantos outros, pelo mundo inteiro, ao longo da história da Igreja), perante tamanha calamidade, Bispo, sacerdotes e povo uma vez mais se entregaram, cheios de confiança, nas mãos da Mãe de Jesus.

Assim o diz a Acta do Cabido desta Catedral, lavrada a 13 de novembro seguinte: "Para efeito de implorar o poderoso patrocínio e valimento da Mãe de Deus, por ocasião da funesta calamidade acontecida na noite de outubro pretérito" [...] "E para restabelecer a serenidade do ar, e os ânimos abatidos e consternados, e suspender o Braço do Omnipotente de segundo e igual castigo sobre o restante da cidade, se resolveu de unânime acordo o celebrar uma festividade muito solene em o dia 9 do mês de outubro de cada ano, em honra do patrocínio da Virgem Santíssima, Mãe de Deus e dos pecadores, tomando-a por protectora e especial advogada".

E, uma vez mais, nos parece escutar a súplica da Mãe: "Não têm vinho"!

4. Dando cumprimento ao voto daqueles que nos precederam na fé, também nós hoje aqui nos encontramos. Não se trata, simplesmente, do desejo de não defraudar a vontade das gerações passadas, continuando a cumprir, quase mecanicamente, o voto realizado há séculos.

Fazemo-lo, também nós, cheios de confiança. Também nós, com efeito, percebemos a falta do vinho novo nas nossas vida: percebemos a falta de ânimo; percebemos o desalento; percebemos e vivemos o sofrimento; sentimos a incapacidade de resolver tantas questões que nos são colocadas, no que diz respeito à vida da fé, mas também no que diz respeito ao nosso quotidiano e às grandes opções que havemos de tomar para a nossa vida... Percebemos, na nossa vida, a falta de Deus!

Contudo, não tenhamos dúvidas - e a celebração de hoje é disso sinal! - uma vez mais a "Mulher", a "Mãe de Jesus", sussurra discretamente aos ouvidos de Seu Filho: "Não têm vinho"! E a nós, ao nosso coração, ela uma vez mais e sempre recomenda: "Fazei tudo o que Ele vos disser".

Assim este seu pedido, esta sua recomendação, encontre disponíveis o nosso coração e a nossa mente.

+ Nuno, Bispo do Funchal