Palavras do Sr. Bispo nos cumprimentos de Natal

30-12-2021

CUMPRIMENTOS DE NATAL

Colégio, 30 de dezembro de 2021


"Trazemos este tesouro em vasos de barro"

1. O encontro natalício da Igreja diocesana à volta do Bispo, neste tempo de Natal e de final de ano, para nos apresentarmos mutuamente os votos de santas festas e de bom ano novo, é sempre uma oportunidade para uma retrospectiva ao ano que passou.

A tentação de fazer balanços, ao jeito de empresa comercial, é muito grande: o que fizemos de bom e o que não correu, decididamente, tão bem. A vida sacramental e litúrgica que mantivemos, apesar de todos os confinamentos; a peregrinação da relíquia de S. Tiago que nos deu uma maior consciência de sermos diocese; o "congresso das confrarias do Santíssimo", celebrado apesar da pandemia e em programa reduzido... Ou a catequese de infância e adolescência já habitualmente com tanta falta de recursos, que se tornou ainda mais deficiente com a pandemia e a obrigação de permanecer em casa; os encontros de formação que deixámos de realizar; a falta das festas no Verão e as dificuldades económicas que este tempo trouxe a todas as comunidades; as divisões e a falta de relação e de entreajuda entre paróquias e comunidades...

Mas não queremos fazer um balanço de "deve" e "haver". Porque a vida cristã não pode nunca ser avaliada com esses critérios: quantas mais ou quantas menos pessoas frequentaram a Missa dominical? Quantas mais ou quantas menos pessoas se viram envolvidas nas actividades paroquiais e nas diocesanas? Quanta presença (positiva e negativa) teve a Igreja na comunicação social regional?...

A vida cristã - quero dizer: a acção de Jesus ressuscitado no coração de cada ser humano - não se pode medir, pelo menos usando os critérios habituais das organizações humanas.

Claro que a vida cristã - extensão do "Verbum Caro", da "Palavra-carne" que é Jesus de Nazaré - se mostra aos olhos de todos. Ela é uma realidade pública e com expressão e influência pública, que não se mostra apenas em Missas e procissões, mas que se traduz em transformação - transformação (conversão) da estrutura do próprio ser humano (do seu modo de pensar, de agir, de ser, de viver) e das estruturas, das realidades sociais e políticas, aproximando-as, cada vez mais, da construção do Reino de Deus.

Mas a vida cristã é sempre maior, mais profunda, mais consciente que aquilo que nos é dado perceber com os olhos do corpo. Podemos (devemos?) dar-nos conta da adesão exterior (ou da sua falta) às iniciativas que tomamos, e perguntar-nos (também tendo em conta de que o todo do povo de Deus é, de verdade, "doutor na fé") se as havemos ou não de manter; o que nos é possível mudar; o que devemos antes promover para que cada um e todos aqueles a quem o anúncio do Evangelho chegar se sintam mais próximos de Jesus e, assim, mais próximos também dos outros cristãos, membros que são do mesmo corpo.

2. Dado o lema do programa diocesano que estamos a procurar viver nestes meses, todo ele centrado na realidade da Igreja que somos, com a missão de anunciar o Evangelho, gostaria agora de vos propor uma reflexão - que quero seja breve - a partir da afirmação do Apóstolo Paulo: "Trazemos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que se veja que este extraordinário poder (ἡ ὑπερβολὴ τῆς δυνάμεως) é de Deus e não é nosso" (2Cor 4,7).

O texto mais completo do Apóstolo é o seguinte: "não nos pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus, o Senhor, e consideramo-nos vossos servos, por amor de Jesus. 6Porque o Deus que disse: das trevas brilhe a luz, foi o mesmo que brilhou nos nossos corações, para irradiar o conhecimento da glória de Deus, que resplandece na face de Cristo. Trazemos, porém este tesouro em vaso de barro, para que se veja que a extraordinariedade [o hiperbólico] deste dinamismo [desta força] é de Deus e não é nosso".

Que tesouro é este a que S. Paulo faz referência? Sabemos que, para o povo bíblico, a "glória" é o modo como o ser humano se dá conta da presença de Deus. É o "peso", a realidade objectiva, que aparece, que se vê, do conhecimento de Deus.

É esta glória que resplandece na face de Cristo. Na sua vida (no seu nascimento, na sua acção evangelizadora pela Galileia e Judeia, e sobretudo na sua morte e ressurreição), resplandecia, mostrava-se, manifestava-se a presença de Deus. Era essa glória que atraía as multidões. Jesus (como Paulo), nunca fez qualquer "desconto" às exigências do Evangelho: bem pelo contrário! Mas nele todos percebiam a glória de Deus, a presença divina, o esplendor de Deus. Dum modo particular na sua cruz e na sua ressurreição [a "palavra da cruz", tinha dito Paulo no início da Primeira Carta aos Coríntios].

A glória de Deus é como a luz da criação, que nos permite tudo ver e, assim, perceber também a presença de Deus na realidade natural. Mas a glória divina encontra-se de um modo sobreabundante na pessoa de Jesus (é a "glória" em primeira pessoa).

É ela que também está presente no coração do Apóstolo. É uma "força extraordinária" que se manifesta no anúncio do Evangelho que converte os corações e reúne os crentes em Igreja. Na vida da Igreja, na presença do Apóstolo, nas palavras e no amor que a todos une e que toma a seu cuidado os mais débeis (de tal modo que os próprios cristãos reconhecem ser um amor mais que humano, um amor divino, isto é, a "caridade"), é a a glória de Deus que está presente - tão presente como na criação; tão presente como nas palavras dos profetas; tão presente como em Jesus de Nazaré; tão presente como no momento da ressurreição. E Paulo convida todos a reconhecer essa realidade.

Para que não se julgue ser algo conseguido, criado, fruto do engenho de um qualquer homem extraordinário, mas que se veja claramente ser algo que vem de Deus, esse dinamismo sobreabundante, hiperbólico, é transportado em vasos de barro: o vaso de barro que é a pessoa de Paulo. Antes, Paulo tinha feito referência a momentos de verdadeira desolação na sua vida apostólica, e mais à frente, ele próprio confessa: "Porque, segundo dizem, «embora as cartas sejam severas e fortes, a presença física é fraca, e a palavra é desprezível»" (2Cor 10,10).

Por contraste, a presença física, o vaso de barro que é Paulo, a sua fragilidade, o seu sofrimento, o seu próprio desânimo, fazem ressaltar a grandeza do Evangelho, a força, o dinamismo poderoso do Espírito, o tesouro que ele traz consigo. O tesouro que Paulo transporta não é seu. E isso prova-o o vaso de barro que é a vida do Apóstolo.

3. Este é o dinamismo da Igreja ao longo dos séculos. É o dinamismo da Igreja nos nossos dias. É o dinamismo da nossa Igreja diocesana do Funchal. Somos todos vasos de barro. A Igreja é constituída pelos vasos de barro que são todos os cristãos. Mas estes vasos de barro trazem consigo o tesouro da glória de Deus que resplandece no rosto de Cristo. Trazem consigo a Cristo ressuscitado, à vida que Ele é e que a todos oferece, para O oferecer ao mundo.

Muitas vezes, o tesouro que transportamos faz com que nos esqueçamos que somos vasos de barro, frágeis e pecadores. O tesouro é de tal modo admirável que, aos olhos de tantos, a realidade que o transporta é também admirável. Não raro, foi esse o raciocínio dos tempos passados. Os "vasos de barro" foram tidos como "vasos de ouro" à conta do tesouro que transportavam.

Hoje, no entanto, corremos o risco contrário. Olhando para o vaso de barro, não raras vezes nos esquecemos (nós próprios e o mundo contemporâneo) do tesouro que ele transporta. Olham para a fragilidade do vaso e esquecem o tesouro. Olhamos, também nós, cristãos, para nós, e esquecemos que não nos anunciamos a nós mesmos mas a Cristo, o Senhor. E não raro desvalorizamos (nós em primeiro lugar) a mensagem da salvação que é a pessoa de Cristo. Reduzimo-la a uma lei, a uma moral ou a uma ideia (senão mesmo a uma ideologia), ao lado das demais. Esquecemos a pessoa de Jesus, à conta de tomarmos consciência dos pecadores fracos que somos.

É importante que, no nosso agir pastoral - digo-o a toda a nossa Igreja do Funchal, muito concretamente -, tenhamos consciência de que cada um de nós é um frágil pecador. Mas, ao mesmo tempo, que cada um de nós é um pecador que transporta consigo um tesouro, não apenas (nem principalmente!) para si, mas para o mundo inteiro: o tesouro que é Cristo. O mundo precisa de Cristo. Precisa de se deixar inundar, "infectar" pelo vírus da salvação que é Jesus ressuscitado, presente e actuante na sua Igreja, nos cristãos.

Ai de nós quando reduzimos o Evangelho ao nosso vaso de barro; ai de nós quando reduzimos o Evangelho à fragilidade do que somos! Ai de nós, quando fazemos o Evangelho à nossa medida, à nossa imagem! Ai de nós quando ofuscamos a glória de Deus que se manifesta hoje em Cristo!

Queremos este ano - a isso fomos aliás convidados pelo Santo Padre - tomar maior consciência da Igreja que somos: povo que caminha, alimentado pela Eucaristia, conduzido por Cristo pastor até aos prados verdejantes da vida divina.

Como isso contrasta com o que cada um de nós é! Mas somos o vaso de barro que Deus escolheu para ser sua presença. E não podemos defraudar nem Deus, nem o mundo que dele espera a vida e que dele tanto necessita.

Creio que, de um modo concreto neste ano de 2022, em que passam os 100 anos da morte do Beato Carlos de Áustria, não podemos deixar de procurar conhecer melhor este santo que Deus colocou no caminho da nossa diocese, e que a enriquece com o seu testemunho e com a sua intercessão.

Por minha parte, como vosso pastor, só posso agradecer-vos (a vós e a Deus) o testemunho que de todos quotidianamente recebo. E pedir-vos, em nome do Senhor: deixai que a glória de Deus se continue a manifestar, qual luz que tudo ilumina - vida que se comunica, caridade que atrai.

+ Nuno, Bispo do Funchal