Nossa Senhora do Monte 2023

15-08-2023

SOLENIDADE DE NOSSA SENHORA DO MONTE

15 agosto 2023


"A Arca da Aliança foi vista"

1. "Indiana Jones e os salteadores da Arca Perdida" (1981) constitui, ainda hoje, uma referência entre os chamados "filmes de aventura". Nesta película, o Professor Jones procurava a Arca da Aliança do Povo de Israel, perdida desde há muito. Era também buscada pelos nazis, na certeza de que quem a tivesse consigo ganharia a IIª Guerra Mundial, seria indestrutível. Como sabemos, o filme é baseado numa antiga tradição bíblica.

A Arca da Aliança, construída por Moisés no Sinai, de acordo com as indicações divinas (Ex 25,10-22), continha as Tábuas da Lei (o documento da Aliança entre Deus e o seu povo), a vara de Aarão (usada por Moisés e Aarão para, em nome de Deus, realizarem prodígios no Egipto, aquando da libertação do povo) e um pedaço do Maná (esse "alimento descido do céu", que dera de comer a Israel durante a sua purificação no deserto). As proporções indicadas por Deus para a construção da Arca são, ainda hoje, o paradigma da beleza, da harmonia arquitectónica.

A Arca da Aliança era o sinal de que Deus escolhera Israel como sua particular propriedade, e que o povo aceitara essa eleição, comprometendo-se a não ter outro Deus, disponibilizando-se para ser a presença do Deus único no meio das nações. "Vós sereis o meu povo e Eu serei o vosso Deus": essa era a "fórmula da Aliança" (Lev 26,12).

Depois da destruição do Templo de Jerusalém em 586 aC, a Arca foi perdida. Com ela, Israel vivia a percepção de ter sido abandonado por Deus: o seu pecado fora de tal forma grande que Deus esquecera o seu povo até ao dia em que chegasse o Messias. Procurando dar uma justificação para este desaparecimento, o II Livro dos Macabeus diz que "Por revelação divina, o profeta [Jeremias] tinha desejado fazer-se acompanhar pela Arca e pelo tabernáculo, logo que chegasse à montanha a que Moisés tinha subido para contemplar a herança de Deus. 5Chegado ao monte, Jeremias descobriu uma gruta ampla e nela mandou depositar a Arca, o tabernáculo e o altar dos perfumes, tapando, de seguida, a entrada. 6Alguns dos que o tinham acompanhado voltaram para marcar o caminho com sinais, mas não o conseguiram. 7Quando Jeremias soube, repreendeu-os, dizendo-lhes: 'Este lugar ficará desconhecido, até que Deus reúna o seu povo e use de misericórdia com ele" (2,4-7).

Relendo todas estas tradições judaicas, a Iª Leitura que escutámos apontava para uma nova e definitiva realidade: "O templo de Deus abriu-se no Céu e a arca da aliança foi vista no seu templo" (Ap 11,19a).

A partir do fim dos tempos, o Apóstolo S. João contempla — e convida-nos a contemplar — o verdadeiro Templo de Deus e a verdadeira Arca da Aliança, finalmente encontrada, qual sinal dos tempos definitivos: é a Virgem Maria. Ela transporta consigo e dá constantemente à luz a Cristo Salvador, o Deus connosco, no meio de nós, e, ao mesmo tempo, o Homem que cumpre em plenitude os mandamentos.

A verdadeira Arca da Aliança já não é um objecto de madeira mas "a Mulher" — ornada não com o ouro perecível mas com a vida resplandecente da maternidade; a Mulher cheia de beleza não tanto pela beleza da sua aparência física mas porque adornada com toda a espécie de virtudes; a Mulher sempre vitoriosa porque traz consigo o Messias, o Deus connosco, Jesus ressuscitado.

2. Neste dia da Assunção de Nossa Senhora ao Céu, nesta Solenidade de Nossa Senhora do Monte, somos, também nós, convidados a contemplar a verdadeira e definitiva Arca da Aliança.

Não tenhamos medo de erguer os olhos ao céu para contemplar a Virgem Maria. Alguns, poderão acusar-nos de esquecer a realidade em que vivemos; dirão que o importante é olhar a terra que pisamos, para a transformar com o nosso idealismo, os nossos sonhos, a nossa vontade, as nossas forças. Esquecem que só descobrimos o exato valor do real quando o percebemos a partir da sua finalidade, da sua meta. O mesmo é dizer: quando dirigimos o nosso olhar para o Céu e nele descobrimos a verdadeira Arca da Aliança.

Não se trata, pois, de moldar a realidade a partir das nossas ideias e dos nossos sonhos. Essas ideologias humanas sempre se mostraram perigosas: foi assim no século passado, com os seus milhões de mortos, causados por ideologias que, precisamente, recusando-se a olhar para o Céu, negando a existência ou a importância de Deus, endeusavam a figura do líder, aniquilando a dignidade do ser humano.

Quando o Apóstolo nos convida a olhar para o Céu, não nos propõe a descoberta de uma ideia mas a contemplação de uma pessoa totalmente formada a partir de Cristo. Propõe-nos a contemplação de uma mulher ("a Mulher" por antonomásia); propõe-nos a contemplação da Mãe que é Maria de Nazaré.

Olhando para Ela, que nos acena e acolhe desde o fim da história, percebemos quem somos. Não somos nem deuses, nem os abandonados a um destino trágico, condenados a viver, cada um por si, quais protagonistas de um reality show obrigados sobreviver numa ilha. Olhando para o Céu e contemplando a Arca da Aliança, percebemos que todo e qualquer ser humano é amado e querido por Deus (no-lo recordava, ainda há dias, o Papa Francisco); percebemos que todo e qualquer ser humano é um verdadeiro lugar de encontro entre Deus e o Homem.

Olhando para o Céu, percebemos que pertencemos a Deus, mesmo que não tenhamos disso consciência — que triste é existirem, ainda hoje, tantos seres humanos a quem não chegou esta Boa Notícia! Percebemos que Deus nos ama, ainda que o nosso caminho se tenha afastado dele.

Contemplando o Céu, percebemos a nossa vocação divina. Percebemos que somos convidados a ser muito mais que aquilo que já conseguimos. Que somos convidados a ser sempre mais — seja como projecto pessoal, seja como projecto de comunidade, de Região, de país.

Contemplando o Céu, percebemos que não nos é permitido desistir — de nós e de quem quer que seja. Em nós e à nossa volta, há ainda muito para transformar, muitos corações a converter, muitas estruturas a melhorar e a modificar.

Olhando para o Céu e contemplando a verdadeira e definitiva Arca da Aliança, descobrimos a meta do nosso viver, do nosso caminhar. Ela mostra-nos o modelo concreto e existencial que nos há-de servir para nos convertermos e para transformarmos a nossa sociedade e o mundo inteiro. Porque um cristão não é nunca alguém que, de braços cruzados, se deixa aprisionar pelo correr do tempo, resignado com o sofrimento e as dificuldades. Pelo contrário: olhando para o fim da história, o cristão percebe, de modo claro, a missão que lhe foi confiada de transformar o mundo em que vive. E percebe que o deve fazer não a partir das suas ideias ou das ideias dos bem-pensantes, ou (muito menos) a partir dos gostos dos poderosos ou até do pensamento da maioria. Contemplando o Céu, percebemos que a nós, cristãos, nos é pedido que transformemos o mundo a partir de Deus. E sabemos que isso é possível porque foi possível na pessoa da Virgem Maria.

Contemplando o Céu, percebemos como se enganam aqueles que julgam vencer com as suas forças ou a sua esperteza. A vitória do ser humano (de todos e de cada um), ou é a vitória do Deus connosco, Jesus Cristo, ou é um caminho inclinado para a derrota e para a morte.

Não tenhamos medo de contemplar o Céu: não é perda de tempo ou tarefa para inúteis preguiçosos. É antes a condição para não nos enganarmos no caminho da construção do homem que somos e da sociedade em que queremos viver.

+ Nuno, Bispo do Funchal