Homilia no Corpo de Deus

17-06-2022

SOLENIDADE DO CORPO DE DEUS

Catedral do Funchal, 16 de Junho de 2022


"Isto é o Meu Corpo"

1. Vindos de todas as paróquias que integram a nossa diocese, aqui nos quisemos reunir como Igreja, para agradecer ao Senhor o dom da Eucaristia. A Eucaristia é o alimento que dá forças ao nosso caminhar como povo de Deus, Igreja que peregrina ao encontro do Senhor por entre as realidades do mundo, dando testemunho da Sua presença no meio de nós.

Acabámos de escutar, na IIª Leitura, o mais antigo relato da instituição da Eucaristia. Sabemos que S. Paulo o integrou na Primeira Carta aos Coríntios, escrita cerca de 24 anos depois da Páscoa de Jesus. Mas o próprio Apóstolo escreve - como escutámos - que este ensinamento o transmitiu, anos antes, quando, pela primeira vez, visitou a cidade grega de Corinto e ali iniciou uma comunidade cristã. E diz também que, por essa altura, já ele, Paulo, o tinha aprendido dos cristãos de Antioquia.

A fidelidade na celebração da Eucaristia e a transmissão do seu lugar central na vida cristã foi sempre algo que a Igreja ciosamente cuidou e guardou como o seu maior tesouro.

A Última Ceia foi um acontecimento que marcou definitivamente a vida de quantos o presenciaram. Foram palavras e gestos de tal modo fortes que os relatos ignoram o resto do banquete e todos os ritos judaicos que terão sido realizados.

A Última Ceia, unida aos acontecimentos da morte e ressurreição do Senhor, marcou de tal modo os discípulos, que logo os cristãos começaram a celebrar a Eucaristia, transmitindo uns aos outros a sua centralidade. Prova desse lugar central é precisamente o facto de, quinze séculos depois, a Missa ter sido o primeiro acto realizado pelos portugueses nesta nossa Ilha da Madeira.


2. "Isto é o Meu Corpo": que queria Jesus dizer com estas palavras, até àquele momento impensáveis na boca de um judeu? Como é que um pedaço de pão pode ser o Corpo de Jesus? Se virmos bem, esta identificação de Jesus com a Eucaristia não é senão a continuidade da própria encarnação do Verbo, que celebramos no Natal: se Deus se pode limitar e tornar visível e presente no homem Jesus de Nazaré, então também o mesmo Jesus pode dizer "Isto é o Meu Corpo"! E pode também ordenar àqueles que estavam com Ele: "Fazei isto em memória de mim"!

São momentos em que Deus toca a história, toca a nossa vida de criaturas, este nosso mundo! Momentos que não somos capazes de compreender na sua totalidade porque, sendo de Deus, nos ultrapassam de modo radical. Mas como é bom, importante e salutar que Deus se torne presente na nossa vida!

Mesmo sabendo que esta presença de Deus nos ultrapassa, podemos (devemos), procurar o seu significado.

O que é o corpo de alguém? O corpo é a presença, a possibilidade de alguém se fazer presente aos outros. É certo que dizemos com frequência que um ausente está connosco: lembramos o seu rosto, as suas palavras... eventualmente temos connosco um objecto que o recorda. Ou, agora, temos a possibilidade de o ouvir e mesmo ver através da tecnologia. Mas sabemos como tudo isso é apenas o modo de ultrapassar uma ausência. Só o corpo torna, de facto, alguém realmente presente, no meio de nós.

Já quando, a seguir à ressurreição, o Senhor se fez presente aos seus discípulos, durante quarenta dias, o seu Corpo, apesar de real e de ser o mesmo Jesus que viveu antes da ressurreição, tinha manifestações diferentes das que possui um corpo simplesmente natural. São as chamadas "características do corpo glorioso" ou ressuscitado: não está sujeito à corrupção, é capaz de ultrapassar as barreiras físicas do espaço e do tempo, e mostra-se cheio da luz, da vida divina.

Durante os 40 dias em que o Ressuscitado conviveu com os discípulos, Jesus ensinou-os também um novo olhar - real mas diferente: o olhar da fé, que vai para além do natural olhar físico.

Por isso, quando, depois da ressurreição, os cristãos começaram a celebrar a Eucaristia, os olhos da fé foram capazes de reconhecer no Pão e no Vinho consagrados a Presença real do Ressuscitado, o Seu Corpo, ainda que com uma aparência física diferente. Como afirmou S. Leão Magno: "O que na vida do nosso Redentor era visível, passou para os ritos sacramentais" (Sermão 2 da Ascensão,1-4).

Portanto, quando Jesus diz: "Isto é o Meu Corpo", apela para algo que ultrapassa uma simples recordação. Ele não diz: "Isto é como se fosse o Meu Corpo". Nem diz: "Quando distribuírem o pão nas vossas refeições, recordem-se de mim que já cá não estou". Não. Isso nunca teria a possibilidade de se transformar naquilo que é a Eucaristia. Seria apenas uma evocação, uma imagem que os primeiros discípulos guardariam consigo, mas que logo teria sido esquecida.

Contemplando a Eucaristia, não vemos a presença física do corpo de Jesus de Nazaré, mas os olhos da fé encontram a presença real do Corpo ressuscitado do Senhor, embora na aparência de pão e vinho.

Apenas uma Presença real pode ter a força que faz da Eucaristia aquilo que ela tem sido para os cristãos ao longo de todos estes séculos, pelo mundo fora. Apenas uma Presença real seria capaz de transformar mentes, corações, vidas, como o fez e continua a fazer a Eucaristia. Apenas uma Presença real poderia dar força aos mártires da Eucaristia - mártires de ontem e de hoje, pois ainda nos nossos dias muitos cristãos são mortos por participarem na Eucaristia. Apenas uma Presença real pode atrair como atrai a Eucaristia. Apenas uma Presença real pode congregar como congrega a Eucaristia.

Assim, só podemos dar à palavra "memória" - usada também na Última Ceia por Jesus - o valor que (naquele tempo como hoje) os judeus lhe dão nas suas celebrações pascais: quando Deus se torna presente na história, o tempo e o espaço humanos ficam relativizados, de modo a podermos estar presentes aos acontecimentos salvadores, mesmo os do passado.

A memória da Páscoa era (e é) o modo de os judeus de todos os tempos se fazerem presentes à saída do povo no Egipto e à sua entrada na Terra da Promessa. Ainda hoje é assim que o povo judeu celebra a sua Páscoa: cada judeu está presente, faz parte do povo saído do Egipto para a liberdade da Terra da Promessa.

Por isso, quando Jesus diz: "Isto é o Meu Corpo... fazei isto em memória de Mim", aquilo que está a dizer é: "Este pão, sobre o qual o sacerdote pronunciou a benção, é a minha Presença, sou Eu mesmo. Sentai-vos à minha mesa, tomai e comei: esta é a possibilidade de, em cada dia, em cada Domingo, vos unirdes a Mim, ainda que distantes no tempo e no espaço"!

3. Reunidos para celebrar esta solenidade que nos convida a louvar a Deus por Ele se tornar presente, no meio de nós, através da Eucaristia, sentemo-nos, também nós, à mesa do Senhor. Unidos a Ele, estamos unidos uns aos outros. Aproximemo-nos dele, o Pão da Vida. Deixemos que Ele nos converta e nos transforme.

E demos-lhe graças pelas maravilhas que realiza em nós, por nós e diante de nós. Demos-lhe graças pela Eucaristia, verdadeira presença de Deus e, por isso, alimento da fé. Ela congrega-nos e une cada um de nós ao Senhor e a todos quantos, no passado, nos nossos dias e no futuro, dela se alimentam e nela encontram a força para viver e dar testemunho da salvação que Jesus nos oferece.

Deixemos que esta presença, o Corpo do Senhor, nos guie no nosso caminhar de Igreja diocesana e no caminho da fé de cada um de nós.

+ Nuno, Bispo do Funchal