Homilia no Conselho da Cáritas
I DOMINGO DO ADVENTO (A)
27 de novembro 2022
Sé do Funchal
Encerramento do Conselho Geral da Cáritas Nacional
1. "Casavam-se e davam-se em casamento, até ao dia em que Noé entrou na Arca; e não deram por nada" (Mt 24,38). Recordando o que tinha sucedido no dilúvio, Jesus chama a atenção dos seus contemporâneos para um modo despreocupado (quase podíamos dizer "divertido") de viver.
Mergulhados no pecado, enredados nas suas malhas; assoberbados com o quotidiano, com o momento - porventura até por causa da simples sobrevivência; incapazes de olhar mais longe, de se perceberem num outro horizonte de vida; ou, simplesmente, distraídos para não ter que se confrontar com a realidade, Deus vai passando ao lado da vida de tantos homens e mulheres.
Fogem dele como Adão, refugiando-se na sombra, na escuridão, na ilusão que criam para si mesmos, tomados pelo medo de comparecer, com a nudez da sua verdade, perante o Criador: "Ouvi os teus passos no jardim [...], tive medo porque estou nu, e escondi-me". Isso mesmo continuamos nós a responder ao Deus que vem até nós e nos procura: "Onde estás?" (Gen 3,9-10).
Vivem distraídos, hoje como nos tempos de Noé (quer dizer: desde os inícios da humanidade) e como nos tempos de Jesus. Olhando para o nosso modo de viver, percebemos que não andamos longe daquele estado de "divertimento" que Jesus denuncia. Vivemos sem razões, sem objectivos. Refugiamo-nos na festa, em gestos e escolhas que fazem esquecer a realidade e as suas exigências.
Centrados em nós, no que sentimos e gostamos, no que nos dá prazer, existimos anestesiados, embriagados pelo espectáculo em que se transformou a nossa vida. Se é verdade que os noticiários nos dão exageradamente conta dos males do mundo - criando, também assim, um mundo fictício - o facto é que o nosso modo de viver (em particular o ocidental) se vê constantemente preenchido por um activismo exagerado, que não permite a paragem, o silêncio.
Se, anos atrás, o alcoolismo era para muitos o modo comum de fugir da realidade, hoje vemos, ao lado deste (que, longe de desaparecer, se foi transformando), vemos a proliferação das drogas, destruidoras da personalidade dos que as consomem - por muito que nos queiram convencer que a sua legalização as torna inofensivas; e vemos, igualmente, o surgir de tantas outras dependências e vícios ou, simplesmente, de realidades virtuais, que conduzem (sobretudo os mais jovens) a mundos inexistentes, prometendo a felicidade fácil e duradoira.
Centrados em nós, preocupados em parecer e aparecer, fugimos do que nos acorda e permite caminhar vigilantes. Fugimos ao confronto que nos dá a conhecer a pobreza do que somos e o quanto necessitamos de Deus e da Sua luz.
2. Era a este confronto que nos convidava o Apóstolo S. Paulo na IIª Leitura: "Chegou a hora de nos levantarmos do sono, porque a salvação está agora mais perto de nós. [...] A noite vai adiantada e o dia está próximo. Abandonemos as obras das trevas e revistamo-nos das armas da luz" (Rom 13,11-12).
"Revistamo-nos das armas da luz". Quais são as armas da luz? A única arma da luz é ela própria, que ilumina e faz desaparecer a escuridão e a sombra. A luz não admite escuridão. A luz, em última análise, não admite sequer a sombra.
É a "luz do meio-dia", celebrada por vários Padres da Igreja: "Se me admitis nestas pastagens - rezava, por exemplo, S. Gregório de Nissa -, far-me-eis certamente descansar ao meio-dia, e eu dormirei em paz, repousando numa luz sem sombra. Com efeito, ao meio-dia não há sombra alguma, quando o sol brilha no seu zénite, precisamente na hora em que fazeis descansar aqueles que alimentastes, quando recolheis convosco no redil os vossos filhos" (S. Gregório de Nissa, Sobre o Cântico dos Cânticos, II; PG 44,802; LH IV, 551).
"Revestir-se das armas da luz" é, portanto, deixar que tudo o que somos - toda a nossa realidade (interior e exterior) - possa ser iluminada plenamente pela luz que é Deus. É deixar que a escuridão - e mesmo as sombras que existem em nós - possam ser julgadas e destruídas.
Deixarmo-nos iluminar por Deus fará, certamente, emergir o que em nós é menos positivo e que gostaríamos de esconder dos outros (mesmo do próprio Deus), para continuarmos, distraídos, a assistir ao passar dos dias e dos anos, sem nunca nos colocarmos em causa, vivendo nesse mundo que idealizamos mas que, na realidade, não existe.
Mas "revestirmo-nos das armas da luz", deixarmos que a luz ilumine quem somos, permitirá também (só ela o permite!) tomar consciência de onde precisamos de melhorar; aquilo em que devemos insistir mais, e onde podemos derrotar, definitivamente, a sombra e a escuridão de tudo quanto em nós é falso. Deixarmos que a luz ilumine quem somos, permite caminhar, com passos decididos, no caminho que Deus nos propõe, que está à nossa frente, impossível de trilhar na escuridão.
"Revestir-se das armas da luz" é, portanto, deixar que Deus nos mostre quem somos e para onde vamos - é "caminhar à luz do Senhor", como nos convidava o profeta.
Sim: a luz julga as trevas e destrói-as; o amor julga o ódio e derrota-o; a paz julga a guerra e mostra que é possível viver de outro modo; o bem subjuga o mal, e constitui uma sua constante acusação.
Não se trata de, cada um, imaginar aquilo em que possa consistir a luz, o amor, a paz, o bem. Não se trata de encontrar uma luz à medida de cada um; uma paz de acordo com as nossas conveniências; um bem segundo os nossos interesses. Trata-se antes de termos a ousadia e a humildade de nos deixarmos julgar por esse Deus que é luz, amor, paz, bem - o Deus que se fez carne, homem, em Jesus de Nazaré. Trata-se de nos deixarmos conduzir por Ele. De nos deixarmos amar por Ele!
Dizia ainda S. Gregório: "Os raios de sol de justiça são as virtudes, que irradiam de Deus e nos iluminam, para abandonarmos as obras das trevas e caminharmos dignamente como em pleno dia; deste modo, repudiando a maldade das obras das trevas e realizando tudo à plena luz do dia, transformamo-nos nós mesmos em luz e, como é próprio da luz, iluminamos os outros com as nossas boas obras". (S. Gregório de Nissa, Sobre a perfeição da vida cristã, PG 46,259-262; LH IV, 178).
Estar, viver vigilantes, procurando tudo discernir à luz de Deus; viver como sentinelas deste mundo, consiste, pois, em nos deixarmos iluminar, julgar, conduzir, amar por este Deus que é amor.
3. Assim, a caridade (quer dizer: o amor de Deus em nós e a actuar através de nós), longe de consistir num mero papel assistencialista, ou de assumir uma qualquer atitude paternalista para com quem quer que seja, constitui antes um poderoso raio desta luz que, vinda de Deus, ilumina e irradia. Que transforma efectivamente tudo o que está à sua volta. E que grita: sim, é possível viver na luz de Deus; é possível fazer o bem que Deus nos propõe; é possível viver a paz que Deus constrói para nós. É possível! É possível, se deixarmos que as nossas sombras e escuridões (o nosso pecado) se confrontem e se deixem julgar pelo Deus de Amor, acolhendo a Sua misericórdia.
A Cáritas é a caridade organizada, definida, em constante acção. Neste Advento que hoje se inicia, peçamos para as Cáritas das nossas dioceses e para a Cáritas Portuguesa; para quantos nelas colaboram; para todos nós que aqui nos encontramos - peçamos que a luz que já nos chega do Presépio de Belém (a luz, o Verbo feito carne) possa julgar e derrotar em nós o pecado. E que possa iluminar o nosso viver (tudo quanto somos) transformando-nos em sentinelas dum mundo novo - esse mundo que começa a despontar, assim que nos deixamos revestir da luz de Cristo.
Que o amor de Deus em nós nos ofereça olhos, ouvidos, boca, mãos que sejam a presença desse Senhor que insiste em vir até nós e até ao mundo inteiro, transformando-o num mundo novo, mais de acordo com o projecto que Deus sonhou para cada um e para todos.