Homilia no Centenário da Morte do Beato Carlos

01-04-2022

CENTENÁRIO DO FALECIMENTO DO BEATO CARLOS

Celebração na Catedral do Funchal

01 de abril de 2022


1. "Todo aquele que ouve as minhas palavras e as põe em prática é como o homem prudente que edificou a sua casa sobre a rocha. Caiu a chuva, vieram as torrentes e sopraram os ventos contra aquela casa; mas ela não caiu, porque estava fundada sobre a rocha" (Mt 7,24-25).

A palavra do evangelho que acabámos de escutar convida a que nos interroguemos sobre o modo contemporâneo de viver, caracterizado, precisamente, pela mudança: nada parece ser certo e seguro, e nós parecemos dar-nos bem com isso.

É, pois, caso para perguntarmos - como o fazem tantos dos nossos contemporâneos: nos nossos dias, vale ainda a pena "escutar a palavra de Deus e pô-la em prática"? O mesmo é dizer: valerá ainda a pena procurar ser uma casa firme e segura, que resista diante das tempestades? Não será antes preferível ser como aquela outra construção que acompanha o sabor do vento (ainda que tempestuoso) e se desmorona, para logo se reerguer e de novo se desmoronar? Não dará a Palavra de Deus a sensação de pretender para cada discípulo que seja uma realidade fixa, imóvel, sem ter em conta a mudança do mundo? Não estará a consagrar, de facto, um tradicionalismo insuportável que obrigaria os discípulos a ficar para sempre prisioneiros dum passado?

Sabemos como S. Vicente de Lérins respondeu a esta questão essencial, ao distinguir o verdadeiro progresso da alteração à fé: "É necessário - dizia ele - que, através das idades e dos séculos, cresça e se desenvolva continuamente a inteligência, a ciência e a sabedoria de todos e cada um, de cada homem e de toda a Igreja. Mas este desenvolvimento na fé, deve dar-se segundo a sua natureza, isto é, conservando a identidade do dogma, da doutrina e do seu significado" (I,23). Longe, pois, de impedir o desenvolvimento e o progresso, a construção segura a que evangelho nos convidava, assente na Palavra de Deus, é antes a garantia de que todo esse movimento e progresso não se perde numa realidade sem motivo, num rumo sem destino, em mudança para a qual jamais existirá vento de feição.

Percebeu-o de modo particular o Beato Carlos. A fidelidade a Deus e aos compromissos que Deus lhe confiara aquando da sua coroação como Rei Apostólico da Hungria, sempre o conduziu e iluminou na compreensão da realidade e na procura de caminhos que a todos conduzissem à vida feliz. Fê-lo enquanto governante do Império, procurando novos caminhos que respondessem às novas necessidades; mas fê-lo também como crente, vivendo assente na fé. Isso o reconheceu a Serva de Deus Zita: quando interrogada por um jornalista sobre o modo como ela e Carlos encontraram forças para ultrapassar as perseguições e traições de que foram alvo, respondeu: "Sem a fé, teria sido impossível".

2. "Irá casar com o herdeiro do trono; desejo-lhe todas as bênçãos" - depois de escutar estas palavras do Papa Pio X, Zita quis interrompê-lo para dizer a Sua Santidade que o Arquiduque Carlos não era o herdeiro imediato de Francisco José. Mas o Papa continuou: "E eu alegro-me infinitamente, porque Carlos é a recompensa que Deus tem guardada para a sua família, por causa de tudo quanto ela fez pela Igreja. Quando for Imperatriz, é necessário fazer com ele tudo o possível para acabar com a guerra". Ao sair da audiência (estávamos em Julho de 1911), Zita comentou para sua mãe: "Graças a Deus, o Papa não é infalível em questões de política".

No entanto, três anos depois, as palavras do Papa mostraram ser tristemente verdadeiras. Podemos reconhecer nelas uma espécie de profecia. As palavras de S. Pio X apenas se enganaram numa coisa: Carlos é uma bênção, não só para a sua família mas também para toda a Igreja e para o mundo inteiro. E, de um modo particular, é uma bênção para esta Ilha, que a Serva de Deus Zita quis que fosse a guardiã do corpo do Bem-aventurado Carlos.

Nestes dias, marcados uma vez mais pela guerra que invade a nossa Europa, devemos olhar para o exemplo deste Santo Imperador.

Um historiador contemporâneo diz que, depois de ter assumido a chefia do Império, Carlos estava "obcecado" por fazer a paz. "O Imperador da paz" - assim era conhecido. Um Imperador que procurava fazer a paz; mas também um Imperador que "respirava" uma paz interior que apenas podia surgir de Deus.

Em Carlos, as palavras da Carta aos Efésios que acabámos de escutar foram plenamente cumpridas: "Não lutamos contra a carne e o sangue, mas contra os dominadores das trevas deste tempo" (Ef 6,12).

Apenas a Eucaristia e a oração - a Palavra de Deus - suportaram o edifício espiritual do Beato Carlos. Descobriu nelas a "armadura de Deus". E, de facto, revestiu-se a si mesmo com ela. Foi a Eucaristia que lhe deu forças na luta pela paz - uma luta, realmente travada contra os "dominadores das trevas".

Aos olhos de muitos, Carlos foi um perdedor: os seus esforços pela paz não foram bem sucedidos, tal como as suas tentativas para manter o governo do Império e a sua unidade. Exílio, sofrimento e morte foram o resultado da sua lealdade a Deus e ao povo do Império Austro-Húngaro. Mas não foi também assim a vida de Cristo? De facto, na vida de Carlos, era a "forma de Cristo" que em cada dia se tornava mais clara, que cresceu em direcção a uma cada vez maior identificação com o Senhor crucificado.

Como disse o Papa Francisco, ele "era acima de tudo um bom pai de família e, como tal, um servidor da vida e da paz. Conheceu a guerra como soldado no início da Primeira Guerra Mundial. Tendo assumido o reino em 1916, e sendo sensível à voz do Papa Bento XV, prodigalizou todas as suas forças para a paz, a custo de ser incompreendido e escarnecido. Também nisto ele nos oferece um exemplo mais do que nunca oportuno, e podemos invocá-lo como intercessor para obter de Deus a paz para a humanidade".

Um exemplo e um intercessor: é por isso que Carlos é uma bênção para o mundo.

Como exemplo, mostra-nos como ser cristãos, católicos no nosso mundo: inspira-nos devoção, fidelidade a Cristo, obediência à Igreja nossa Mãe; mostra-nos como nos alimentarmos da Eucaristia; como devemos rezar e ter devoção à Virgem Maria; como cuidar da família no meio de tantas ocupações; como amar o próximo e cuidar dos mais fracos; como sermos construtores da paz nos nossos dias.

Mas como intercessor junto de Deus, ele dá-nos a certeza de apresentar as nossas preces ao Pai. E são tantos os pedidos que, por meio dele, queremos apresentar a Deus! E devemos fazê-lo, porque a santidade da sua vida (e particularmente o modo como viveu a morte) é uma garantia de que nele podemos encontrar ajuda e conforto nas nossas dificuldades.

Seja o Beato Carlos, neste nosso tempo e cem anos depois da sua morte, um exemplo de existência construída sobre a Palavra de Deus, e um intercessor na procura e na construção da paz.

+ Nuno, Bispo do Funchal