Homilia no 20 de fevereiro 2020
NO 10º ANIVERSÁRIO DO 20 DE FEVEREIRO
Catedral do Funchal, 20 de fevereiro de 2020
"Mestre, não te importa que pereçamos?"
Nós, seres humanos, destacamo-nos dos outros seres vivos existentes no mundo, entre outros factores, pelo convite (que é mandamento) que Deus nos faz desde o início: "dominai a terra" (Gn 1,26.28).
Este domínio tem sido efectivo - de tal forma que, não raras vezes, nos dá a sensação de colocar o homem no lugar do próprio Deus, e de podermos chegar à destruição do criado. Contudo, o domínio da natureza não é tal que consiga fazer-nos escapar completamente a um conjunto de forças, também elas naturais, que (não raras vezes) nos fazem tomar consciência de que comungamos dos destinos da criação, sujeitos a tantas forças adversas.
De um modo particular, os madeirenses fizeram desta realidade (do domínio da natureza e da fragilidade inerente ao próprio homem) uma experiência constante, quase um modo de vida. Desde o momento em que se iniciou a colonização do território, experimentámos o que significa "dominar a terra". Se a paisagem se mostrava (então como hoje) maravilhosa, não tardou a mostrar-se igualmente difícil de conquistar. O suor, o sofrimento, a tenacidade e a esperança marcam, desde sempre, a vida do nosso povo.
Marcam-na, de sobremaneira, no momento em que surgem as catástrofes naturais, em particular as aluviões que, de tempos a tempos, semeiam um rasto de destruição.
Longe de constituirem castigo divino, as catástrofes mostram antes como estamos unidos ao mundo natural; mostram a nossa fragilidade; mostram os nossos limites. Mostram que somos criaturas. Recordam-nos que não somos Deus, nem sequer pequenos deuses.
Como escutámos no evangelho, também os discípulos de Jesus se encontraram perante esta mesma aflição. De repente, levantou-se uma grande tormenta, "e as ondas eram tão altas que enchiam a barca de água". A aflição dos discípulos ("Mestre, não Te importas que pereçamos?") contrasta com a serenidade e tranquilidade de Jesus ("à popa, dormia com a cabeça numa almofada").
Depois de ordenar ao vento e ao mar que amainassem, Jesus mostra aos discípulos a atitude com que eles hão-de enfrentar estas realidades naturais: "Porque estais tão assustados? Ainda não tendes fé?".
Ao mesmo tempo que Jesus recusa uma qualquer interpretação de castigo divino que se possa abater sobre a humanidade pecadora, convida os discípulos a ancorar toda a sua existência numa outra realidade: a fé.
A fé consiste na nossa relação com Deus - consiste naquela relação com Deus que nos dá a consciência, como dizia o Apóstolo S. Paulo na Iª leitura, de que nada nem ninguém nos pode separar do amor de Deus. Ou, como afirma o Concílio Vaticano II, "pela fé, o homem entrega-se total e livremente a Deus, oferecendo «a Deus revelador o obséquio pleno da inteligência e da vontade» e prestando voluntário assentimento à Sua revelação" (DV 5).
Aos cristãos de Roma, S. Paulo interrogava-se sobre que realidades nos poderiam separar dessa relação única, forte, dessa âncora segura onde assentar a nossa vida: "Quem poderá separar-nos do amor de Cristo? A tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo ou a espada?". E logo respondia: "em tudo isto somos vencedores, graças Aquele que nos amou". Para acrescentar: "eu estou certo de que nem a morte nem os Anjos nem os Principados, nem o presente nem o futuro, nem as Potestades nem a altura nem a profundidade nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que se manifestou em Cristo Jesus, nosso Senhor".
A fé, a vida com Deus, a certeza de que Deus se encontra ao nosso lado, dá-nos um modo de viver que nos permite encarar de outro modo todos os obstáculos, todas as tempestades, todos os perigos. A fé, a vida com Deus, não nos torna sobre-humanos, mas permite-nos viver, em cada dia que passa, de um modo bem diferente: não tememos a perseguição dos homens nem os elementos naturais; não temos medo de catástrofes nem de perigos. Não porque achemos que não nos podem causar dano, a nós ou aos nossos, ou porque estejamos convencidos de que a fé constitua um qualquer escudo invisível contra as catástrofes, mas porque sabemos que nada nem ninguém nos poderá separar daquilo que verdadeiramente interessa: o amor de Deus.
É por isso que, diante das catástrofes, não podemos deixar de cuidar uns dos outros e de, com o coração em Deus, participar no cuidado de todos e por todos, quem quer que seja. Esse, mais que qualquer outro, é o momento de mostrar como a fé é vida e todos abraça naquele amor indestrutível.
Há precisamente 10 anos, a Madeira viveu um dos mais aflitivos momentos da sua história - uma vez mais, como sucedeu tantas vezes ao longo da vida dos madeirenses.
Mas - ao contrário de tantas outras situações semelhantes ocorridas anteriormente - aquele 20 de fevereiro de 2010 colocou, pela primeira vez, a nossa Ilha nos noticiários do mundo inteiro pelas piores razões. O mundo assistiu, impotente, às águas e lamas que se precipitavam pelas encostas, pelas ribeiras, levando atrás de si quanto encontravam. O inferno parecia ter irrompido no Paraíso do Atlântico. E, desta vez, o inferno não era de fogo, mas de água e lama. Vidas perdidas, casas destruídas, famílias enlutadas. Toda uma Ilha, toda uma população que parecia impotente perante a fúria da natureza.
Nada parecia poder conter a fúria das águas. Recordo também eu, desses dias, a preocupação de cada seminarista madeirense e a preocupação de toda a comunidade do Seminário e, igualmente, as mensagens de solidariedade que de todos os lados surgiram, reconfortantes, destacando-se aquela do próprio Papa Bento XVI.
Mas, ao mesmo tempo, o mundo assistiu ao testemunho da fé de um povo que não se deixou consumir pela angústia e desespero, mas que, entreajudando-se, e unindo esforços, foi capaz de reerguer um novo futuro, quase com a mesma rapidez com que tinha surgido a aluvião.
No Mar de Tiberíades, Jesus estava na barca com os discípulos. No 20 de fevereiro, Jesus estava, de um modo particular, na Madeira, com os madeirenses. Sinal disso mesmo são este crucifixo, vergado, também ele, pela força destruidora, como que partilhando o sofrimento de todo um povo; e a imagem da Senhora da Conceição da Capela das Babosas que, como Mãe, de pé, intercedia pelos seus filhos.
Neste dia em que celebramos o centenário da passagem desta vida de Santa Jacinta Marto e em que celebramos a memória dos dois pastorinhos de Fátima - neste dia, queremos, junto do altar do Senhor, recordar aqueles que perderam a sua vida na aluvião de há 10 anos, um dos quais funcionário desta nossa catedral. Pedimos a Deus que, no seu amor, os acolha e lhes dê a participar da sua vida gloriosa, que é a vida dos santos.
E para nós, que ainda peregrinamos na terra, nesta nossa terra amada, pedimos a graça da fé, que nos permite viver com a serenidade e a confiança de quem percebe que acima de todas as destruições e sofrimentos se encontra o amor de Deus.
+ Nuno, Bispo do Funchal