Homilia nas Exéquias de D. Maurílio de Gouveia

21-03-2019

Exéquias D. Maurício de Gouveia

Sé do Funchal

21 de Março de 2019

Leituras: Is 25,6a.7-9; Sl 22; 2Cor 4,14-5,1; Mc 15,33-39

"Verdadeiramente, este Homem era Filho de Deus"

Irmãos

As exéquias de um cristão - e, em particular, as de um bispo - mais que o momento de elogio de um morto, são antes a ocasião de nos darmos conta de como, na passagem deste nosso irmão para o Pai, nos vem ao encontro e resplandece o mistério Pascal de Cristo.

Verdadeiramente, não nos encontramos perante a realidade de alguém que desaparece, mas perante o mistério da "passagem", daquilo que, em português tradicional, se chamava o "passamento": a passagem de alguém deste mundo para o Pai, e a passagem de Cristo, desta forma tão clara quanto dolorosa, na vida de um homem que já lhe pertencia há muito, desde o dia do seu baptismo e, depois, lhe pertencia também a outro título, como sacerdote e bispo.

1. A nós que vivemos na carne, como humanidade aparentemente destinada à morte, como "morituros" (diriam os velhos romanos), ter-nos-ia bastado o grande sinal da ressurreição de Jesus: um homem, verdadeiro homem, viveu a morte e derrotou-a!

Morto da forma mais infamante então conhecida, que era a morte de cruz, morto após uma longa e sofrida paixão, atravessado o seu coração pela lança de um soldado, acolhido exangue nos braços de sua Mãe, sepultado num sepulcro vazio e selado com uma grande pedra, eis que aparece vivo ao terceiro dia, cumprindo, desse modo, tudo o que fora anunciado em relação ao Messias.

Ter-nos-ia bastado a vitória de Cristo, porque estes acontecimentos afirmam ao nosso coração e à nossa mente (aos sentimentos e à razão) que um homem como nós derrotou a morte, colocando fim à sua tirania, até então invencível. Uma brecha foi aberta no muro da morte que nos parecia separar irremediavelmente da vida em plenitude, da vida eterna.

A vida gloriosa de Jesus ressuscitado proclama o final do domínio da morte. Um homem como nós derrotou-a, e não por meio de uma fuga ou de uma regressão, mas por meio de uma luta no próprio terreno inimigo, aceitando viver a morte até ao fim, com todas as suas consequências, até ao mais profundo da solidão - até ao abandono total do próprio Pai: "Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?".

Jesus não fugiu em nada ao drama humano. Não fugiu em nada ao próprio drama da morte e a tudo o que, para nós, ela significa. Viveu a vida até ao fim, como homem verdadeiro. E, precisamente desse modo, ressurge, cheio da vida divina, para anunciar a vitória da vida, a libertação da tirania.

Ter-nos-ia bastado a vitória de Cristo, e seria, por si mesmo, uma boa notícia. Mas não ficou por aqui o amor de Deus por nós. Não bastou ao Pai dar aos homens (a cada um de nós e a todos) a possibilidade de sonhar, de esperar uma vida eterna que cada um poderia conquistar porque um de nós foi capaz de o fazer - uma eternidade nossa, construída, porventura, à custa de um sem fim de "obras valerosas", de bom comportamento, de altruísmo e generosidade.

Foi bem mais longe o amor de Deus por nós. É que o mistério Pascal de Jesus não termina no encontro do sepulcro vazio ou, sequer, no encontro com o Ressuscitado e com a alegria que ele contém. Do mistério Pascal de Jesus faz igualmente parte o dia de Pentecostes, esse momento em que os próprios discípulos se vêem inundados com a vida do Ressuscitado - semelhante, diz S. Lucas (cf. Act 2,2-3), a um vento impetuoso, a línguas de fogo que derrubam os obstáculos criados pelos homens. E é então que os discípulos entendem e experimentam (os Doze e, depois, os habitantes de Jerusalém) que a vida do Ressuscitado foi também derramada na sua própria vida, a ponto de lhes permitir fazer um com Jesus, vivo para sempre.

Essa é a alegria do Pentecostes, a alegria do Deus connosco - não apenas daquele Deus connosco que outrora viveu na Galileia e na Judeia, mas a alegria do Deus que agora, hoje, está e vive connosco e nos inunda de vida divina. Alegria de tal forma grande que, nesse momento, os habitantes de Jerusalém pensaram que os discípulos estivessem embriagados. Por isso, Pedro não hesitou em proclamar que todos se encontravam, tão-somente, a viver o cumprimento definitivo das promessas, e que "Aquele que foi prometido é para vós e para os vossos filhos, e para quantos de longe ouviram o apelo do Senhor, nosso Deus" (Act 2,39).

Como é grande o amor de Deus! É imenso, infinito, inesperado, surpreendente, misericordioso, redentor! E como essa maravilha, que apenas o Criador teria podido imaginar, nos é oferecida, a cada um, em cada sacramento! Porque os sacramentos mais não são que isto mesmo: o mistério pascal de Jesus, a sua vida divina, a salvação vivida aqui e agora, por um ser humano, no seio da comunidade que é a Igreja.

2. Quando um cristão nasce para o céu e se torna clara a sua passagem para Deus, como sucedeu agora com o Senhor D. Maurílio, como não ver nesse acontecimento, que permanece com todo o dramatismo humano, o mesmo acontecimento da morte de Jesus? E como não escutar, também aqui nesta catedral, as mesmas palavras do centurião que proclama: "verdadeiramente, este homem era filho de Deus"? A morte baptismal, aquela em que morremos para nós para vivermos para Aquele que por nós morreu e ressuscitou, o mistério Pascal de Jesus faz-se hoje, aqui, diante de nós, bem presente. Mas como não ver, igualmente, nesta presença, a vida de Jesus ressuscitado?

Era o próprio Apóstolo quem no-lo dizia, na II Leitura. Nesse magnífico trecho da segunda Carta aos Coríntios (2Cor 4,14-5,1), S. Paulo reafirma a certeza de que a ressurreição de Cristo é também a nossa, e ilustra este tema com duas comparações. Numa primeira, uma contraposição, o Apóstolo apresenta o definhamento do corpo carnal em contraste com a cada vez maior juventude do espírito. Não se trata de adquirir uma "juventude psicológica", de quem recusa a realidade da sua velhice, como hoje tão frequentemente encontramos em tantos nossos contemporâneos. Trata-se antes de verificar como, com o passar do tempo, o nosso corpo mortal definha progressivamente, perde forças, capacidades, enquanto, em contrapartida, o homem interior, espiritual, se renova se nos abrirmos confiantes à ação do Espírito divino. Por acção do próprio Deus, de dia para dia, aquele que se confia ao agir de Deus vai adquirindo não uma juventude humana, carnal, segundo os padrões da moda, mas deixa-se configurar, cada vez mais, com a fonte da vida, com a juventude, com a vida eterna de Cristo ressuscitado - nessa configuração, podemos dizer, consiste aliás a tarefa, a luta quotidiana da vida cristã.

Do mesmo modo (segunda comparação que S. Paulo desenvolve na sua carta), no tempo que passa vamos perdendo a tenda do nosso corpo de carne, na certeza de que, no céu, o próprio Deus nos prepara uma habitação eterna. De tudo o que é passageiro, frágil, transitório, e que vamos perdendo, o Espírito de Deus vai construindo em nós uma realidade definitiva, que consiste na partilha plena da sua vida, até às dimensões de Cristo, o Homem Novo, diz Paulo noutro lugar. Deus constrói-nos uma habitação definitiva, acolhe-nos junto de Si, permite-nos viver consigo, partilhar a plenitude eterna da sua vida.

3. Diante de nós encontram-se os restos mortais de um cristão, a quem o próprio Senhor confiou o ministério apostólico, fazendo-o bispo, precisamente aqui nesta Sé do Funchal, no dia 13 de janeiro de 1974. Diante de nós encontra-se o corpo humano na sua fragilidade máxima mas, ao mesmo tempo, continuando a proclamar aquela juventude, aquela vida plena que brilhava na sua palavra, nos seus actos, nos seus olhos, sobretudo quando anunciava o Evangelho e celebrava os sacramentos, ou quando partilhava a sua vida de cristão e sucessor dos Apóstolos.

Diante de nós encontra-se uma habitação de carne na sua maior fragilidade, mas que proclama, precisamente, a certeza de que uma habitação eterna lhe foi agora oferecida junto do Pai, porque foi desse modo e com esse sentido que, até ao fim, viveu o Senhor D. Maurílio.

Perante Jesus que morria, o centurião romano exclamou: "verdadeiramente, este homem era Filho de Deus!". Hoje, aqui, perante o corpo morto deste nosso Bispo, queremos também nós - porque em nós corre igualmente a vida cristã, a vida da fé, que é a vida do baptismo - queremos também nós dizer: verdadeiramente, neste nosso pastor se manifestou a força da vida de Cristo em nós. E com ele, e como o centurião do evangelho, diante deste Cristo que jaz morto diante de nós, queremos também, uma vez mais, proclamar acerca de Jesus: "verdadeiramente, este Homem era Filho de Deus". 

D. Nuno Brás, Bispo do Funchal