Carta Pastoral sobre o Beato Carlos d'Áustria

28-10-2022

"Serão chamados filhos de Deus"

"Bem-aventurados os que promovem a paz porque serão chamados filhos de Deus" (Mt 5,9). Estas palavras

de Jesus concretizaram-se dum modo particular na vida do Beato Carlos de Áustria, cujo centenário do

falecimento iremos celebrar no próximo dia 1 de Abril - ele cujo corpo é guardado e venerado na igreja de

Nossa Senhora do Monte.

Santa Teresa Benedita da Cruz - mártir do ódio nazi aos judeus e aos cristãos durante a IIª Guerra Mundial

- escreveu que "é na noite mais escura que surgem os maiores profetas e os santos". Ao partilharmos com

a humanidade um dos seus momentos mais difíceis, ao vivermos uma guerra que julgávamos ser

impossível na Europa, quero recordar a todos o exemplo de santidade deste pai de família e governante,

que na Madeira, sofrendo o exílio, a pobreza e a doença, ofereceu a sua vida pela paz entre os povos.

A santidade, como afirmou claramente o Papa Francisco, é a vocação de todos os cristãos: "Gosto de ver a

santidade no povo paciente de Deus: nos pais que criam os seus filhos com tanto amor, nos homens e

mulheres que trabalham a fim de trazer o pão para casa, nos doentes, nas consagradas idosas que

continuam a sorrir" (Exortação "Alegrai-vos e exultai", 7).

E, ao receber a família do Beato Carlos, durante o Ano da Misericórdia, o mesmo Papa Francisco não

hesitou em afirmar: "Carlos de Áustria foi antes de tudo um bom pai de família, e como tal um servidor da

vida e da paz. Ele conheceu a guerra, por ter sido soldado no início da Primeira Guerra Mundial. Tendo

assumido o reino em 1916, e sendo sensível à voz do Papa Bento XV, prodigalizou-se com todas as forças

na luta pela paz, à custa de ser incompreendido e escarnecido. Também nisto ele nos oferece um exemplo

mais atual do que nunca, e podemos invocá-lo como intercessor para obter de Deus a paz para a

humanidade".

Muitos são os livros escritos a propósito da vida e do testemunho deste "Santo Imperador". Não os quero

repetir mas apenas (sobretudo a quantos peregrinarem nestes próximos meses jubilares ao túmulo do

Beato Carlos), recordar os traços gerais da vida deste cristão, e mostrar como nele Deus foi construindo a

"forma" de Jesus, manifestando, deste modo, a Sua proximidade e presença no mundo.


Os anos felizes da infância de Carlos de Áustria

Quando, em 17 de Agosto de 1887, no castelo de Persenbeug, junto do Danúbio, nasceu um pequeno

arquiduque a quem foi posto o nome de Carlos, Viena encontrava-se no auge do "romantismo". Carlos fazia

parte desse mundo feliz de príncipes, princesas, bailes e castelos que inspiraram tantos filmes e romances.

Parecia destinado a ser mais um membro da família imperial, usando o título de "arquiduque" mas

conformando-se em ser o 6º na ordem da sucessão do seu tio-avô, o velho imperador Francisco José. Um

dos seus mestres na infância descreveu o jovem Arquiduque como tendo "docilidade de carácter,

sensibilidade fora do comum, precoce consciência do dever, desejo de agradar aos outros, profunda

inclinação religiosa".

Dois episódios são sintomáticos deste seu carácter. Bride Casey, encarregada nos primeiros anos da sua

educação, recordou como, a certa altura, se deu conta do desaparecimento de muitas camisas do armário

de Carlos. Interrogadas as empregadas do Palácio, estas responderam: "Sua Alteza Imperial ofereceu-as

todas às crianças pobres". Noutra ocasião, Carlos dirigiu-se ao administrador do Palácio que pagava os

salários aos operários, perguntando se também ele não poderia trabalhar no jardim para ganhar qualquer

coisa. O administrador, admirado, respondeu: "Para que é que queria ganhar qualquer coisa?". E Carlos

retorquiu: "Há tanta gente pobre; iria ajudá-los se pudesse ganhar qualquer coisa".

"Eram, no dizer do historiador Gordon Brook-Shepherd, os sinais precoces daquela bondade de ânimo que

manteve sempre intacta como arquiduque, imperador e exilado. A promessa que baloiçava na criança,

manteve-se no homem. Não é um retrato elaborado por pais cegos pelo afecto, ou por um qualquer

obsequioso homem da corte. É uma imagem que todos reconheceram autêntica, fossem parentes próximos

ou longínquos, defensores ou adversários políticos, na pátria ou no estrangeiro".

Em 1905, depois de concluir os estudos secundários num mosteiro beneditino, Carlos começou a carreira

militar exigida a um membro da família real. Com a morte do pai, a 1 de novembro de 1906, passou a ser o

terceiro na linha da sucessão. Por isso, dedicou-se durante dois anos a um programa intensivo de estudos

de direito e política na Universidade de Praga.

O momento mais difícil da sua vida espiritual experimentou-o quando, chegada a maioridade dos 20 anos,

passou a viver no castelo de Brandeis sem a companhia dos familiares e dos mestres. Nesse tempo,

apenas a frequência dos sacramentos e a oração o mantiveram na fé, apesar do progresso espiritual ter

sofrido uma paragem.

Tudo indica que foi nestes momentos mais difíceis, e diante da desolação que experimentava, que Carlos

descobriu a Eucaristia como refúgio. Essa devoção eucarística jamais o havia de abandonar, e tornou-se

uma característica da sua vida: já comandante do exército, fazia sempre de modo a que os seus homens

pudessem ter acesso a um lugar de adoração do Santíssimo Sacramento, e várias vezes foi surpreendido a

rezar diante do Sacrário antes de tomar grandes decisões.


O matrimónio e a vida familiar

Foi pois num ambiente de alguma solidão interior que, em 1909, o jovem Arquiduque conheceu Zita de

Bourbon-Parma, então com 17 anos, filha do Duque Roberto de Bourbon-Parma e da Infanta portuguesa

Maria Antónia de Bragança. O seu noivado foi celebrado em 13 Junho de 1911, em Capezzano Pianore

(Itália), propriedade do pai de Zita.

A percepção da santidade do matrimónio e da família ficou clara no pedido que Carlos fez à sua noiva, logo

após a celebração: "Agora devemos ajudar-nos um ao outro a chegar ao Céu". De acordo com Zita, este foi

o mote de toda a sua vida conjugal.

Pouco depois, Zita deslocou-se a Roma acompanhada pela família, a fim de pedir a bênção do Papa S. Pio

X para o Matrimónio que deveria celebrar-se dentro dalguns meses. Carlos estava impedido de se deslocar

a Roma, por razões protocolares e políticas. No final da audiência, S. Pio X segurou as mãos de Zita e

disse-lhe: "Ides desposar o herdeiro do trono; desejo-vos todas as bênçãos". Zita ainda tentou corrigir o

Santo Padre, dizendo que o herdeiro do trono imperial era o Arquiduque Francisco Ferdinando, mas o Papa

acrescentou de imediato: "E alegro-me infinitamente, porque Carlos é a recompensa que Deus reservou à

sua família e à Áustria por tudo quanto fez pela Igreja. Quando for Imperatriz, é necessário fazer com Carlos

tudo o possível para terminar a guerra". Ao sair da audiência, Zita confidenciou a sua mãe: "Felizmente, o

Papa não é infalível em matéria de política". Mas o facto é que, daí por três anos, tudo iria acontecer como

S. Pio X tinha anunciado: Carlos seria o herdeiro directo do trono e começaria a Primeira Guerra Mundial.

Antes da celebração do Matrimónio, Carlos pediu ao jesuíta Carlo Maria Andlau que o ajudasse a preparar

espiritualmente aquele momento, meditando nos gestos e nas palavras da celebração. O sacerdote

recordou depois como Carlos viveu aqueles tempos: "Franco, interiormente simples, firme e com rectidão de

vontade".

O Matrimónio de Carlos e Zita foi celebrado em Schwarzau no dia 21 de Outubro de 1911. Nas alianças, os

esposos quiseram gravar o início da conhecida antífona da Virgem Maria: "Sub tuum praesidium

confugimus, Sancta Dei Genitrix" ("À tua protecção nos acolhemos, Santa Mãe Deus"), consagrando deste

modo toda a sua vida familiar à intercessão de Nossa Senhora. Com esta mesma intenção, os jovens

esposos foram, dias depois, consagrar a sua nova família, deslocando-se em peregrinação ao santuário

Mariano de Mariazell.

Embora o matrimónio correspondesse aos pedidos que o Imperador Francisco José tinha feito a Carlos em

1910, todos são unânimes em reconhecer que o amor e a fé se encontravam na raiz desta família. Foi um

amor profundo, até ao final - até àquele: "Amo-te infinitamente", com que, no último dia da sua vida, Carlos

se haveria de despedir de Zita.

Mas foi também um amor que ultrapassou a própria morte: Zita "era uma viúva cujo marido existia ao seu

lado", testemunharam os seus filhos e netos. A própria Imperatriz confidenciou a uma neta, dias antes de

morrer: "Sabes, vou morrer em breve. Mas não fiques triste: vou finalmente rever o teu avô. Há 67 anos que

espero por este momento!".

Para Carlos de Áustria foi determinante a vida familiar. A irmã de Zita, Maria Antónia, reconheceu que

aquele era um "casamento duma harmonia completa nas opções fundamentais e no pensamento; nele

reinava uma confiança total". E um estudioso da vida de Carlos de Áustria afirmou: "A grande união

existente entre os dois cônjuges, o nascimento de uma prole numerosa, a genuína atmosfera de natural e

alegre religiosidade que se respirava na nova família, tiveram um influxo determinante no progresso

espiritual de Carlos e na sua ascensão à santidade" (Dalla Torre).

Os filhos não tardaram a aparecer, e foram em grande número: Otão nasceu em 20 de Novembro de 1912;

a 3 de Janeiro de 1914, nasceu Adelaide. Roberto irá nascer a 8 de Fevereiro de 1915, e Félix a 31 de Maio

de 1916. Carlos Luís nascerá em 10 de Março de 1918; Rudolfo a 5 de Setembro de 1919, e Carlota a 1 de

Março de 1921. Por fim, Elizabete, que nasceu em Espanha, em 31 de Maio de 1922, já depois da morte do

pai.

Apesar de todas as tarefas governativas, Carlos não deixou nunca de dedicar tempo e cuidado à família.

Foi, no dizer de Otão, o seu primeiro educador na fé: "Tinha uma sabedoria religiosa pessoal e muito

profunda, e deu-nos a nós, seus filhos, um ensino religioso completo. Sempre permaneceu em mim

impressa a convicção e a imagem de meu pai como um homem de fé profunda, verdadeiramente vivida".

De modo particular, Carlos vincava nos filhos a necessidade de agradecer o dom inestimável da fé, levando-

os ele mesmo à igreja, narrando-lhes a vida de Jesus, rezando com eles e ensinando-lhes as verdades

fundamentais da fé. Nesta educação para a fé, ocupava um largo espaço a educação para o amor do

próximo.

Os anos da Guerra: Imperador e construtor da paz

Quando Carlos nasceu, cinco outros arquiduques tinham a precedência na linha de sucessão ao trono. Ou

seja: para que Carlos viesse um dia a ser Imperador, seria necessária uma sucessão de acontecimentos

improváveis. O facto, porém, é que, um após outro, todos esses acontecimentos foram tendo lugar. Assim,

em 1896, faleceu Carlos Luís (1833-1896), irmão do Imperador e pai de Francisco Ferdinando, de Otão

Francisco (o pai de Carlos) e de Ferdinando Carlos Luís. Em 1889, morreu em circunstâncias algo

misteriosas o único filho varão do Imperador e seu herdeiro natural, Rudolfo de Habsburgo-Lorena (1858-

1889). Em 1900, Francisco Ferdinando, ao casar com uma noiva que não era de ascendência real

(casamento morganático), impediu os seus filhos de entrar na linha da sucessão. Em 1906, faleceu o

arquiduque Otão de Habsburgo-Lorena (1865-1906), pai de Carlos. E, em 1911, Ferdinando Carlos Luís

renunciou aos direitos de sucessão por questões matrimoniais.

A partir deste momento, Carlos passou a saber que iria reger o império após a morte do herdeiro directo de

Francisco José, o seu tio Francisco Ferdinando. Mas, previsivelmente, tal sucederia apenas dentro de uma

ou duas décadas. Contudo, o assassinato do Arquiduque Francisco Ferdinando, em Sarajevo, no dia 28 de

Junho de 1914, iria mudar mesmo essa previsão, e Carlos passou a ser o herdeiro imediato do velho

Imperador.

Depois do atentado de Sarajevo e na sequência de acontecimentos anteriores, relacionados sobretudo com

o apoio dado aos nacionalistas, o Imperador Francisco José declarou guerra à Sérvia. Uns dias antes,

consciente do carácter pacífico do seu sobrinho-neto e herdeiro, Francisco José tinha dito a Carlos: "Vou ter

que fazer coisas pelas quais não terás responsabilidade".

Declarada a Guerra, Carlos, apesar de ser o herdeiro do trono, continuou a servir no exército: "camarada

leal, chefe inteligente e piedoso; uma figura de pai para os seus homens" - é deste modo que o descrevem

aqueles que com ele serviam. Por outro lado, as cartas que escrevia a Zita e que foram depois conhecidas,

mostram-no muito preocupado com as condições dos soldados e com as consequências que a guerra teria

nos povos do Império.

Ao notar como, no início, muitos viviam entusiasmados o momento da guerra, Carlos confidenciou a Zita:

"Sou Oficial, mas não compreendo como é que gente que vê partir os seus homens para a guerra se pode

entusiasmar deste modo".

O que era no início somente um conflito entre dois Estados, depressa se tornou numa Guerra europeia. Os

jogos das alianças, o nacionalismo exacerbado presente um pouco por toda a Europa, a vontade de fazer a

Guerra (também como modo de dar origem a uma "nova" Europa e, por parte dos alemães, a certeza de

sair vencedor, com a possibilidade de vingar derrotas antigas e aumentar o peso internacional do país),

incendiaram rapidamente o Velho Continente, dividindo-o em dois grandes blocos: a Alemanha, a Áustria-

Hungria e a Turquia por um lado; e, por outro, a França, a Grã-Bretanha, a Rússia e a Bélgica.

A quem olhar a sucessão dos acontecimentos nos dias que antecederam o início da Guerra e os esforços

realizados para que esta não fosse desencadeada, quase parece que uma mão invisível dirigia os

protagonistas para o abismo, impedindo todos os esforços em favor da paz.

Carlos, como Oficial do Exército, partiu para a Guerra, servindo em várias frentes. Um autor descreveu-o

nestes momentos: "O seu caráter alegre, amável, atraente, conquistou as simpatias e amizades de colegas

e soldados. Mas, ao mesmo tempo, o seu rígido sentido do dever, a perfeita actuação do seu serviço,

impuseram-no à admiração e estima dos que lhe estavam próximos". Muitos recordam-se de ver Carlos com

o Terço na mão, recolhido em oração ou simplesmente dirigindo os seus homens.

Em 21 de Novembro de 1916, morreu o velho Imperador Francisco José. Carlos assumiu de imediato o

comando do Império. Dias antes do falecimento do Imperador, Carlos, então com 29 anos de idade, tinha

dito: "A tarefa principal que aquele que é responsável pelo futuro da monarquia deve ter presente é a de

iniciar o mais breve possível o caminho para uma boa paz". Assim, no dia seguinte a ser Imperador, Carlos

fez publicar um "Manifesto" no qual se comprometia a respeitar e guardar todas as liberdades dos seus

povos e a "fazer tudo para pôr fim o mais breve possível aos horrores e aos sacrifícios da guerra".

Em 30 de Dezembro desse ano, Carlos foi solenemente coroado Rei Apostólico da Hungria. Nessa ocasião,

recebeu a unção real e pronunciou um solene juramento: em nome de Deus, assumiu a responsabilidade

por todo o seu povo. Esse momento marcou-o para o resto da vida.

A Imperatriz Zita afirmou, recordando o acto da coroação: "Significou que, a partir desse momento, uma

enorme responsabilidade pesava sobre os ombros do Imperador Carlos. Isso incitou-nos a voltar-nos ainda

mais para Deus. Implorámo-lo para que nos ajudasse, e iluminasse todos os acontecimentos que iriam

suceder, e sobretudo que nos guiasse para a paz". Carlos e Zita assumiram pois o seu lugar de governantes

como uma missão: todos os povos do Império lhes tinham sido confiados, pelo que deviam rezar, sofrer,

sacrificar-se por eles.

Como era seu propósito, Carlos começou, logo de início, a procurar caminhos de paz, ainda que a situação

militar fosse nessa altura favorável ao Império Austro-Húngaro. Como afirma François Fejtö: "Desde a sua

chegada ao trono, Carlos foi obcecado pela ideia de sair da guerra".

A primeira iniciativa - que esteve quase a chegar a bom porto - foi tomada logo no princípio de 1917,

através do irmão de Zita, o príncipe Sixto, oficial do exército belga mas com contactos ao mais alto nível no

governo francês. Falhada esta por ter sido boicotada por vários dos negociadores, Carlos não desistiu e

apoiou as outras tentativas de diálogo, em particular as do Papa Bento XV. Todos estes caminhos se

revelaram becos sem saída. Como afirma um historiador contemporâneo: "Veio depois a saber-se que

qualquer proposta de paz, mesmo a mais generosa, teria sido sempre recusada pelas potências inimigas"

(Mario Carotenuto). Não espanta pois que Carlos de Áustria tenha sido chamado "o Imperador da Paz" -

seja pelos constantes esforços em fazer a paz, seja pela paz que ele próprio vivia, que impressionava a

todos, e que era fruto da sua proximidade com Deus.

Entretanto, durante a Guerra, Carlos cortou todos os luxos no palácio imperial: os carros foram colocados

ao serviço do transporte de alimentos para os mais necessitados; as refeições foram reduzidas; e os oficias

chegaram mesmo a dizer que se comia melhor na messe da frente da batalha que no Palácio do Imperador.

Por outro lado, Carlos e Zita não hesitaram em deslocar-se em visita aos seus soldados (cálculos

efectuados mostram que terá passado cerca de 1/3 do tempo de reinado junto dos seus soldados),

tornando-se próximo de todos.

Ao longo do seu governo, Carlos tomou ainda várias medidas decisivas: começou por afastar do comando

os generais que se mostravam incapazes de gestos de humanidade e apenas olhavam para a vitória

qualquer que fosse o seu custo; suprimiu o duelo entre os oficiais, bem como as punições corporais; proibiu

o uso de gás venenoso nas trincheiras e o bombardeamento de populações civis (salvando em concreto a

cidade de Veneza, que esteve para ser destruída pela aviação Austro-Húngara). Em 1917, conseguiu fazer

aprovar uma amnistia geral para os presos políticos. É ainda de Carlos a iniciativa de criar, pela primeira vez

no mundo, um "Ministério dos Assuntos Sociais". Não espanta, portanto, que o Imperador se tivesse visto

cada dia mais abandonado pelos colaboradores e acompanhado apenas por sua esposa.

Em Junho de 1918, a derrota alemã na frente francesa e a derrota austríaca na frente italiana colocaram

praticamente um fim à Guerra. Em Setembro, a rendição da Bulgária conduziu ao pedido de armistício

efectuado pela Áustria, Alemanha e Turquia.

A Guerra estava perdida, mas Carlos continuava à frente do Império. Era o momento de reconstruir e

relançar um novo modo de agir. Assim, a 16 de Outubro, fez publicar o "Manifesto dos povos", propondo

uma renovação constitucional de tipo federalista para os povos do Império, e a 28 desse mês nomeou um

novo governo. Contudo, ao contrário do que tinha prometido meses antes, o presidente americano Wilson

recusou-lhe o apoio. E, depois deste, os outros líderes europeus, que sempre tinham garantido a defesa da

permanência do Império Austro-Húngaro, viraram-lhe as costas. Uma após outra, cada nação, outrora

reunida sob o Império, declarou a sua independência.

Nesta sequência, a 11 de Novembro, o governo austríaco pediu a abdicação do Imperador. Este,

aconselhado por sua esposa, recusou abdicar mas assinou um documento em que aceitava retirar-se

temporariamente do exercício do poder. No dia seguinte, foi proclamada a República.

Em 17 de Março de 1919 foi pedido a Carlos que escolhesse entre três possibilidades: ou a abdicação

completa e formal, que permitiria à família imperial permanecer na Áustria, com todos os seus bens e

propriedades; ou a partida para o exílio; ou a prisão. Em 23 de Março, a família imperial partiu para o exílio

na Suíça. Foi despojada de todos os bens.

Instado por vários conselheiros e por várias entidades internacionais (entre as quais o próprio Papa), bem

como pela consciência do dever que tinha assumido para com o seu povo ao ser coroado em Budapeste,

Carlos recusou todas as pressões para abdicar. Tinha a consciência de ser a única possibilidade de

sobrevivência do Império e daquilo que ele significava para a Europa. Foi também por isso que

empreendeu, mesmo exilado na Suíça, duas tentativas de regressar a Budapeste para retomar as rédeas

do governo (na Páscoa e em Outubro de 1921). Foram tentativas falhadas, sobretudo pela oposição do

"Regente", Almirante Miklós Horthy: o apoio que, com lágrimas nos olhos, tinha garantido a Carlos antes da

partida deste para o exílio, era agora negado. Em 4 de Novembro de 1921, também a Assembleia Nacional

Húngara aboliu todos os direitos de Carlos.

Carlos e Zita (que, em Outubro, já grávida, tinha insistido em acompanhar o esposo na tentativa de regresso

a Budapeste) foram levados sob escolta ao longo do país, até embarcarem para a Madeira no navio Cardiff,

recebendo inúmeras manifestações de carinho por parte das populações.


Na Madeira, guiado pela vontade de Deus

Quando Carlos e Zita subiram para o navio que os iria conduzir ao exílio, receberam uma única visita: a do

Núncio Apostólico na Hungria, Mons. Lorenzo Schioppa. Foi ele quem relatou o estado de alma de Carlos e

Zita naquele momento: "O rei Carlos e a rainha Zita não são pessoas comuns. São figuras que assumem

uma grandeza bíblica. Vi muitas coisas na minha vida, mas não poderei esquecer aquele adeus ao casal

real. A minha alma sacerdotal foi edificada e enriquecida com uma nova experiência, porque pude verificar

que ainda existem almas grandes, verdadeiramente cristãs. O rei acolheu com uma calma sobre-humana o

seu destino, e quando lhe quis expressar a minha compaixão, foi ele a consolar-me, dizendo: 'Deus quis

que fosse assim'. Esta clara visão da vontade de Deus dá ao mais desafortunado dos príncipes a força de

suportar uma prova tão dura e difícil. Muitos foram aqueles que, no momento do perigo, abandonaram o seu

soberano, desejoso de paz; mas ele, como verdadeiro cristão, a todos perdoou. No momento de se afastar

para um exílio longínquo e para um futuro incerto, ele não disse mais nada a não ser: «Pus toda a minha

esperança em Deus». Nobres sentimentos que tornam ainda mais claras as palavras ditas pelo rei no

momento das grandes dificuldades: «Não quero fazer derramar uma única gota de sangue por mim: prefiro

o exílio»".

Dias depois, antes de mudarem de embarcação, transferindo-se para o Cardiff, Carlos e Zita receberam a

visita de um Padre capuchinho que lhes levou a Eucaristia. Ainda não conheciam o seu destino, não tinham

qualquer notícia dos filhos, nem sequer outra roupa a não ser a que levavam no corpo. Em Gibraltar, o

Cardiff teve que fazer uma paragem maior, por causa do mau tempo. Foi então permitido, uma vez mais,

que um outro sacerdote subisse a bordo e celebrasse a Missa. De Gibraltar, o barco rumou ao Funchal.

Quando chegaram à Madeira, a 19 de Novembro, Carlos e Zita de Habsburgo estavam apenas

acompanhados pelo Conde Józeph Hunyady e sua esposa. Zita estava grávida da que viria a ser a última

filha do casal. Ora no dia 19 de Novembro a Igreja celebra a memória de Santa Isabel (Elizabete) da

Hungria. Por isso, Carlos disse a Zita: "Se for menina, vamos chamá-la Elizabete". Carlos não viria a

conhecer esta sua última filha, que havia de nascer em Espanha, dias depois da sua morte. Ainda no barco,

o olhar de Carlos descobriu as duas torres da igreja de Nossa Senhora do Monte: "Que saudades desperta

em nós aquela igreja!", confidenciou a Zita.

Apesar de não haver qualquer recepção oficial, Carlos e Zita foram acolhidos por uma pequena multidão,

pelo Cón. Homem de Gouveia (em representação do Bispo D. António Pereira Ribeiro) e pelo Presidente da

Câmara do Funchal. O governo português colocou à sua disposição a Vila Victória, uma dependência do

"Reids Palace Hotel".

Durante os primeiros dias, Carlos e Zita sairam apenas para ir à Missa na Sé e para visitar o Bispo do

Funchal. Entretanto, foi montada uma capela na Vila Victória: tinha sido o único pedido que o Imperador

fizera ao Bispo do Funchal.

Carlos e Zita estavam no Funchal, mas os seus filhos tinham ficado na Suíça. A 25 de novembro chegou a

notícia de que um deles, Roberto, precisava de ser submetido a uma cirurgia ao apêndice. Zita começou a

fazer as diligências para estar com ele, conseguindo no dia 9 de Dezembro a obtenção dum passaporte

português.

Poucos dias depois, a 22 de Dezembro, chegou à Madeira D. João de Almeida, antigo oficial da Guarda

Imperial austríaca: como era português, não necessitava de qualquer autorização governamental (a sua

esposa chegaria também, semanas mais tarde). Foi um dos mais próximos do Imperador ao longo da sua

estada na Ilha. Nessas poucas semanas, todos queriam convidar e gozar da companhia de Carlos e de Zita:

podemos percebê-lo facilmente lendo as notícias dos diários madeirenses dessa altura.

Por fim, a 4 de Janeiro, Zita partiu para a Suíça, para junto do filho, uma viagem paga pela venda no

Funchal das poucas jóias pessoais que Carlos tinha consigo. Zita só regressará à Madeira a 2 de Fevereiro,

acompanhada por seis dos seus filhos, todos expulsos da Suíça, e por alguns servos da Casa. Outros

chegarão apenas em meados de Fevereiro, como foi o caso do Padre Zsàmboki. Roberto, em recuperação

da intervenção cirúrgica, permaneceu na Suíça, e só haveria de chegar a 2 de Março, acompanhado pela

sua tia-avó, D. Maria Teresa de Portugal.

Entretanto, no dia 1 de fevereiro, o Director do Reids tinha pedido a Carlos que pagasse o aluguer da Vila

Victória. O Imperador tinha à sua disposição apenas 5.000 francos suíços, que usou para saldar a dívida.

Rocha Machado, um homem de negócios madeirense que vivia na Suíça, sabendo das dificuldades

económicas da família, colocou à sua disposição a Quinta do Monte. Era uma residência agradável para o

Verão, mas completamente inadequada para o Inverno. Contudo, num dos raros dias de sol, o Imperador

visitou a casa e quis imediatamente mudar-se, mesmo pedindo emprestado muito do necessário para aí

viver.

Sabemos que o tempo do Monte é, no geral, bem diferente daquele dia de sol, e o clima húmido e frio não

tardou a fazer-se sentir. Foram dias de verdadeira pobreza, de falta de alimento, de frio, com pouca água,

com falta de electricidade... dias de abandono. Uma empregada descreveu a situação numa carta, só

publicada depois da morte de Carlos: "Estou verdadeiramente desesperada, dizia. Alguém deve fazer

alguma coisa, porque Suas Majestades não moverão um dedo e, sem dizer uma palavra, vão deixar-se

fechar num buraco a pão e água, se for isso que deles se exige... Naturalmente, todos nos ajudamos uns

aos outros para combater as dificuldades. Por vezes falta-nos a coragem: mas quando vemos a paciência

de Suas Majestades, aceitamos tudo, retomamos o fôlego e continuamos em frente".

Ao mesmo tempo, estes primeiros dias na Quinta do Monte, já com a família toda reunida, foram também

dias de felicidade: passeios frequentes, conversas de Carlos com os filhos mais velhos, Otão e Adelaide.

Foi durante um desses passeios que a família se deparou com o funeral de um homem, acompanhado

apenas por uma criança que chorava e por uma mulher que o segurava pela mão. E toda a família, cheia de

compaixão, incorporou-se no cortejo e acompanhou em oração aquele pobre até à sua última morada.

A 9 de Março, Carlos desceu a encosta para, juntamente com Otão e Adelaide, comprar no Funchal um

presente para Carlos Luís, cujo aniversário ocorria no dia seguinte. No regresso, apanhou um resfriado.

Para além disso, de 15 a 19 de Março, toda a família foi atacada pela gripe. O médico, dr. Monteiro,

chamado só no dia 21, julgou a situação do Imperador como muito grave: os pulmões tinham sido

completamente atacados. Pediu, no entanto, que se consultasse um outro colega, o dr. Porto, que

confirmou o primeiro diagnóstico.

Por estes dias, chegou finalmente à Madeira o Conde Joseph Kâroly que não descansou até chegar junto

do seu Rei no exílio. Foi a última visita que, já de cama, o Imperador insistiu em receber.

No domingo 26 de Março, o Padre Zsàmboki celebrou uma Missa. O Imperador, de cama e acometido pela

tosse, insistiu que fosse lido o evangelho da multiplicação dos pães. Durante a celebração, a tosse de

Carlos parou. "Gostaria muito de ver o altar", disse para Zita, uma vez que a porta do quarto só estava

entreaberta. Apenas a Condessa Mensdorff se preparava para comungar. "Também eu quero comungar",

disse Carlos. "Impossível - respondeu Zita - Foi consagrada apenas uma partícula". "Por favor, vai e diz

que também eu 'devo' comungar". A Imperatriz levantou-se e, chegada à porta, viu que o sacerdote já tinha

dado a Comunhão à condessa Mensdorff, mas que tinha ainda na mão uma segunda partícula consagrada,

e olhava à sua volta. É que já no decorrer da Missa, o P. Zsàmboki tinha sentido um impulso que o levou a

consagrar uma segunda partícula. E Carlos confessou: "Enquanto escutava as palavras do Confiteor,

parecia-me ter Jesus junto de mim, que me dizia: 'Sim, comunga'. Eu não percebia e estava hesitando. E

Jesus disse: 'Vamos, agora a Comunhão deve ser recebida'. Então não pensei noutra coisa".

Os médicos sentiram-se impotentes. Sujeitaram Carlos a dolorosos tratamentos que, se durante algum

tempo lhe aliviam a tosse, faziam, por outro lado, inchar de tal modo as pernas que as dores se tornavam

insuportáveis. O rosto de Carlos apenas se alegrava ao escutar os filhos que brincavam no jardim, e com a

companhia da esposa. Mas nunca se escutou dele uma queixa.

O IV Domingo da Quaresma era, no Monte, marcado pela Procissão dos Passos. Nesse Domingo, todos

rezaram "pela saúde do bom Imperador Carlos", e muitos foram os que bateram à porta da Quinta do Monte

para saber notícias do doente.

A partir do dia 27 de Março, a febre continuou a subir até aos 40º. Os médicos decidiram que seria

necessário oxigénio. Nesse dia à noite, o P. Zsàmboki decidiu dar a Santa Unção a Carlos. Antes de se

confessar pela última vez e de receber a Santa Unção, o Imperador disse: "Perdoo a todos os meus

inimigos, a todos os que me ofenderam e a todos os que maquinaram contra mim". Logo depois, pediu que

o seu filho mais velho estivesse presente na celebração: "Quero que se recorde para sempre, para que, um

dia, também ele saiba o que um verdadeiro católico deve fazer nesta situação".

A dada altura, Carlos confessou a Zita: "Prometi a Deus permanecer sereno durante os tratamentos, e nada

fazer que não seja necessário, mas obedecer em tudo, por Seu amor". E noutro momento: "Gostava tanto

poder ver os nossos filhos... Mas peço-te que não entrem aqui. Não seria prudente".

A situação piorou rapidamente na tarde de sexta-feira. Zita colocou-lhe nas mãos uma imagem do Sagrado

Coração de Jesus. O único modo de obter algum alívio era o oxigénio. Mas havia pouquíssimo no Funchal,

e devia ser transportado para o Monte em pesados recipientes que duravam apenas para sete minutos. Zita

disse-lhe que era necessário não se cansar de ter paciência. "Cansar-me? Lamentar-me? Mas quando se

conhece a vontade de Deus, tudo é bem, tudo é bom!", disse Carlos. E acrescentou: "Quero dizer-te

claramente: eu procuro sempre e unicamente conhecer a vontade de Deus, sempre e em todas as coisas, o

melhor possível, e segui-la de modo mais perfeito".

No fim desse dia, a Imperatriz começou a rezar com ele as suas orações preferidas, segurando-lhe as

mãos. O P. Zsámboki comunicou ao Imperador a chegada de uma bênção da parte do Santo Padre.

A 1 de Abril, os médicos, verificando o constante agravar-se do estado do doente, reconheceram que o fim

estava muito próximo. Por volta das 10 horas, o Imperador disse com clareza: "Devo sofrer muito para que

os meus povos possam de novo encontrar-se unidos". E ainda: "Meu Deus, arrependo-me de todo o

coração destes e de todos os meus pecados e imperfeições, porque com eles Te ofendi, Meu Deus.

Desgostei-Te". E depois: "Caro Salvador, protege os nossos filhos... Guarda-os no corpo e na alma. Faz

com que prefiram morrer a cometer um pecado mortal".

Por fim, por volta das 11h30, Carlos dirigiu a Zita as últimas palavras: "Amo-te infinitamente". Entretanto,

faltou o oxigénio. No seu último respiro, os que estavam à sua cabeceira ainda escutaram: "Jesus". Eram

12h23. O coração do "Santo Imperador" tinha deixado de bater.

Com o "Santo Imperador" (como os madeirenses gostam de lhe chamar), aprendamos também nós a

procurar sempre e em toda a parte a vontade de Deus, procurando corresponder-lhe o melhor que nos for

possível.

Que este tempo, vivido em companhia do Beato Carlos de Áustria, e recebendo a indulgência, tal como o

Papa Francisco nos concedeu, possa ser, também para nós, aquilo que, há cem anos atrás, significou para

toda a diocese a sua presença, o seu testemunho e a sua morte, como escreveu o então Bispo do Funchal,

D. António Pereira Ribeiro: "Nenhuma missão tem concorrido tão eficazmente para avivar a Fé na minha

diocese como o exemplo da paciência heróica e da morte santa do seu Imperador".


Funchal, 24 de Março de 2022

+ Nuno, Bispo do Funchal