Homilia do Bispo do Funchal no Dia Diocesano do Clero

19-06-2020

SOLENIDADE DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS

Dia do Clero

Sé do Funchal, 19 de Junho de 2020

"Deus é amor: quem permanece no amor, permanece em Deus, e Deus permanece nele" (1Jo 4,16).

1. Quando celebramos a Solenidade do Sagrado Coração de Jesus, estamos, antes de mais, a celebrar a realidade absoluta e concreta que constitui a chave, o segredo de tudo quanto existe. Ninguém entenderá o mundo, a vida, a existência humana, o universo inteiro, a não ser a partir da consideração do amor como absoluto.

É ao amor que tudo é relativo: tudo é vivência, concretização do amor que é Deus; ou tudo, ao contrário, é falta dele, falha, negação. Mas antes de tudo, antes que alguma coisa ou algum ser existisse no mundo, antes que o próprio mundo existisse, existia o amor. O mesmo é dizer: existia Deus.

É por isso que o amor é sempre uma realidade muito concreta. É o Deus vivo, o Deus que cria, que partilha a sua vida e que tudo mantém no ser. Por amor. Porque Ele é amor.

E no coração de cada ser humano - amado, querido com amor único - Deus colocou esta sua semelhança: amou-nos e deu-nos a capacidade de amar com o seu amor. Em cada dia, em cada momento, somos criados por amor e para o amor. E em cada dia, em cada momento, cada ser humano é chamado a corresponder e a espalhar o amor à sua volta.

Neste caminho para o amor, não nos falta, sequer, no concreto, no vivido da história, a concretização do amor absoluto (por isso, único capaz de salvar): Jesus de Nazaré, de braços abertos na cruz e com o coração trespassado. À sua imagem podemos caminhar; com Ele podemos percorrer o caminho; nele encontramos a vida em que somos (todos e cada um) chamados, também, a viver.

Ficam, deste modo, relativizadas as obras das nossas mãos. Tudo quanto fazemos e somos - nós e quem quer que seja - só faz sentido se for uma concretização deste amor primeiro e último. Fica a nu em que consiste o pecado: desamor, amor fingido, porventura disfarçado ou chamado de "amor" - mas sempre muito longe de qualquer semelhança com o ser de Deus.

E fica ainda claro aos nossos olhos a importância da relação, e a perda de tempo do egoísmo, qualquer que ele seja, mesmo que disfarçado de boas intenções. Porque o amor diz sempre um tu - um tu mais importante que o eu; um tu a quem o eu se entrega, completamente, sem medida e definitivamente. É a recusa absoluta da solidão.

Do mesmo modo, fica ainda claro como não é vergonha depender deste amor, depender deste Deus. Pelo contrário: essa é a única oportunidade de sermos nós mesmos. Estar e viver de joelhos diante do amor não envergonha ninguém; não nos torna menores; não nos infantiliza.

Sim, é verdade: dependemos do amor. E gostamos de depender dele. E isso torna-nos mais, porque o amor nunca esmaga. E isso torna-nos maiores (infinitamente maiores), porque caminhamos aos ombros de Deus. E isso torna-nos melhores porque só desse modo é extirpado do nosso coração tudo o que nos afasta do próprio amor, tudo o que nos afasta de nós mesmos.

E a nós, sacerdotes, foi-nos confiada a missão de ser a presença sacramental deste amor concreto e absoluto. Por isso, por causa deste absoluto, também nós (como outrora os discípulos junto ao mar da Galileia), à voz de Jesus que nos chamou, deixámos casa, profissão, família, para nos consagrarmos totalmente ao discipulado, ao seguimento, à companhia deste Senhor, que, por nosso intermédio, quer chegar a todos, e a todos quer tocar com os seus dons, renovar, dar vida.

2. Como tudo isto contrasta, põe a claro e denuncia o nosso pecado - "nosso" de sociedade humana que persiste em se afastar do amor e da sua dependência, na tentativa gorada de provar que é capaz de vencer por si e com as suas forças; e "nosso" de sacerdotes, marcados pela tibieza, tantas vezes sem a radicalidade e ousadia apostólicas, expressão da urgência do amor!

Talvez a situação de pandemia, em que ainda vivemos, nos tenha feito acordar, um pouco que seja, para as grandes questões que pareciam adormecidas, senão mesmo esquecidas.

Convém, por isso, que nós, presbitério desta Diocese do Funchal, nos deixemos interrogar não só pelo modo como vivemos e como saímos deste tempo de confinamento como, sobretudo, pelo lugar que Jesus nos convida a ocupar, e pelo anúncio que Ele nos confia neste mundo que agora recomeça a movimentar-se. O amor tudo ilumina, tudo coloca no seu devido valor e, por isso, tudo julga. Não tenhamos medo de nos deixarmos julgar por Ele (cada um e o todo do nosso presbitério).

Cada um de nós gostaria, certamente, que ao seu lado estivesse um outro sacerdote: que fosse mais de acordo com o modo como pensa a vida da Igreja e do mundo. Cada um de nós gostaria também de um outro bispo, mais ao seu gosto, capaz de conduzir a diocese para aquele caminho que cada um pensa ser o melhor.

Mas nós somos aqueles que o Senhor chamou, consagrou e enviou. Pedro, João, Tiago, Mateus, Filipe... Como cada um dos Doze era diferente! E sabemos que, não raras vezes, surgiam discussões entre eles!

Hoje, o grupo dos discípulos, em quem o Senhor confia para estar presente no meio do seu povo, somos nós, estes presbíteros que aqui estão, com as suas qualidades e defeitos, com a sua santidade e o seu pecado. Diferentes, mas unidos naquele que nos chama. Diferentes, mas unidos no ministério que Ele nos confia. Diferentes, mas enviados a este povo, a esta gente concreta da Madeira e Porto Santo, que Ele persiste em fazer viver no seu amor - sim, nesse amor absoluto e concreto que se manifestou em Jesus Cristo nosso Senhor.

Como havemos de interpretar hoje, de viver com toda a nossa alma, com todo o nosso ser, este sacerdócio ministerial que Ele nos confia? Deixai que vos proponha cinco breves pontos que hoje me parecem, mais que nunca, essenciais.

a) Em primeiro lugar, não podemos perder a capacidade de nos deixarmos seduzir pelo amor absoluto e concreto que é Jesus Cristo. "Tu me seduziste, Senhor, e eu deixei-me seduzir; Tu me dominaste e venceste!" - dizia o Profeta Jeremias, como que resumindo a sua vida (Jer 20,7).

Ai de nós, quando aceitarmos ser meros "funcionários do sagrado", vendedores duma mercadoria invisível; prometedores de uma segurança que não podemos garantir; mantenedores de uma ordem ultrapassada, de outros tempos, à imagem do património que se encontra à nossa guarda, mas que não consegue falar aos nossos contemporâneos - que apenas são capazes de admirar a sua riqueza e, talvez, a sua beleza, mas que, interiormente murmuram (mais ou menos em silêncio): "já não é assim, e ainda bem que não é"!

b) Depois, havemos de ser homens de fé mais firme, que colocam em Jesus Cristo toda a sua confiança. A fé faz-nos viver a vida de outro. Isso poderia derrotar-nos, tornar-nos menores. Mas quando o outro é Deus, o amor em absoluto, isso torna-nos maiores.

Ai de nós quando nos servirmos de Deus como pretexto para anunciar as nossas ideias, por melhores, acertadas e ajuizadas que sejam. Conseguiremos reunir à nossa volta um pequeno grupo de homens e mulheres, entusiastas; mas quando estes perceberem que seguiam apenas um homem e as suas ideias, abandonarão o grupo na primeira oportunidade.

c) Havemos de ser Padres que, vivendo da fé, vivem, por isso, cada vez mais no horizonte da vida eterna. E, assim, ajudam os irmãos a não olhar apenas para o aqui e agora, mas a situar a sua existência no horizonte de Deus.

Ai de nós, quando perdermos o fulgor, a capacidade de colocar a eternidade diante do povo que está ao nosso cuidado - um horizonte, que não se compra nem se vende, mas que é o único a poder pronunciar com verdade e conteúdo a palavra felicidade.

O que temos para dar, nem sequer somos nós, a nossa generosidade, o nosso saber, a nossa argúcia. O que temos para dar é, tão simplesmente, a Cristo, e a Cristo crucificado, como outrora sucedeu com o Apóstolo (1Cor 1,23).

O que temos para oferecer é um louco horizonte de vida, como é, de há dois mil anos a esta parte, o anúncio do Ressuscitado - mas um horizonte arrebatador, entusiasmante, capaz de fazer deixar, no momento, o barco, as redes, a família - porque algo de novo, de único, de manifestamente real, porque Alguém passou por nós e se nos impôs com fulgor nunca antes visto: o Amor que apenas Aquele que é o Amor absoluto e concreto pode ser.

Hoje, mais do que nunca, o mundo necessita de quem lhe apresente o sentido da existência, de quem lhe abra o horizonte da vida eterna, em vez de o deixarmos estar prisioneiro do simples aqui e agora.

d) Havemos de ser Padres que se deixam cada vez mais interpelar pelos rostos, pelas vidas, pelas pessoas concretas que nos foram confiadas - e por todos quantos, não fazendo parte do nosso rebanho, necessitam de escutar o Evangelho, eles mais que ninguém!

Ai de nós, quando perdermos a capacidade de nos deixarmos interpelar pela pobreza, material ou espiritual, que grassa à nossa volta, para exercitarmos apenas ritos, cumprirmos horários, repetirmos palavras já ditas.

e) Havemos, finalmente, de ser Padres capazes de trabalhar uns com os outros, em união fraterna, com todas as nossas diferenças.

Ai de nós quando olharmos para a nossa comunidade como uma propriedade pessoal, a que estamos agarrados porque não nos causa problemas - habituada que está aos nossos gostos, horários, regulamentos. Ai de nós quando não formos capazes de ajudar o colega ao nosso lado, por nos faltar generosidade, porque não gostamos do seu modo de ser, ou apenas porque nos deixamos invadir pela preguiça! Ai de nós quando não formos capazes de ser presbitério que assume, como tal, o pastoreio do rebanho que o Senhor lhe confiou. Ai de nós, quando não formos capazes de viver e trabalhar como Igreja!

Não tenhamos dúvidas. O rosto, a fé dos fiéis da nossa Diocese do Funchal depende, em grande parte, do modo como vivemos a fé. A sua ousadia apostólica depende, em grande parte, da nossa capacidade de romper caminhos - aqueles que o Espírito Santo nos indicar. A salvação dos nossos irmãos depende, em grande parte, do modo como lhes apresentarmos a pessoa de Jesus, único salvador.

Peço ao Senhor Jesus Cristo, presença absoluta e concreta do amor absoluto - que, por isso, dá à história o seu centro verdadeiro - peço-Lhe que nos faça a todos mais firmes na fé, alegres na esperança, solícitos na caridade.

Ele nunca nos faltará. Sejamos nós capazes de lhe abrir o coração.

+ Nuno, Bispo do Funchal