Voto a São Tiago Menor 2022

01-05-2022

SOLENIDADE DE S. TIAGO MENOR

Igreja de Santa Maria Maior, 1 de Maio de 2022


1. As leituras de hoje, próprias do III Domingo do Tempo Pascal e da Solenidade de São Tiago Menor, convidam-nos a reconhecer um conjunto de dimensões que devem estar presentes na vida quotidiana do cristão.

A morte e a ressurreição de Jesus, com a esperança e a certeza que abrem diante de nós, moldam, dão inspiração e respiração constante, à existência do cristão: oferecem a esperança da vida definitiva e plena com Deus, a certeza oferecida pela vitória que Jesus obteve para Si e para todos nós sobre o inimigo que é a morte.

A Páscoa dá, assim, origem a um novo modo de viver, que caracteriza os discípulos de Cristo - o modo de viver cristão, de que São Tiago Menor foi testemunha até ao fim, dando, com o seu sangue, testemunho da verdade daquilo que aconteceu com Jesus e do significado que esses factos podem e devem assumir para cada um. A partir das leituras que acabaram de ser proclamadas, vejamos pois alguns elementos desse novo quotidiano.

2. Em primeiro lugar, este novo modo de existir é um viver com Jesus ressuscitado. Depois dos acontecimentos de Jerusalém, os discípulos regressaram (ainda que por pouco tempo) à Galileia. No entanto, o Senhor ressuscitado continuava presente: Ele não deixa os seus - não os abandona, como se fosse um qualquer fundador que deixou em herança um pensamento, mas que, prisioneiro do passado, após a sua morte perdeu qualquer domínio sobre aquilo que criou. Não: Jesus ressuscitado continua presente, e é determinante para a existência de todos e de cada discípulo, ao longo dos tempos.

Ele está presente, em todos os tempos, lugares e culturas, tal como esteve presente naquele encontro junto ao mar de Tiberíades: é o Senhor ressuscitado. Faz-se reconhecer na sua palavra ("Rapazes, não tendes nada para comer?"); faz-se reconhecer na ordem a pescar, a agir ("Lançai a rede à direita do barco, e achareis"), faz-se reconhecer na abundância da pesca e na refeição que Ele próprio prepara para os seus - a Eucaristia - repetindo, tornando presentes, os gestos da Última Ceia: "Vinde comer. [...] E, tomando o pão, distribuiu-o entre eles".

Aos discípulos, cabe reconhecer a presença do Ressuscitado, discerni-la, como fez João ("É o Senhor"), e como fez Pedro: num impulso que o caracteriza, Pedro retoma as vestes baptismais e deita-se à água, esquecendo tudo o resto (o peixe, o barco e os companheiros), para estar com o Senhor. Ou, como fizeram depois os demais discípulos, mais serenos, percorrendo de barco os 90 metros que os distanciavam da praia e arrastando consigo a rede cheia de 153 grandes peixes. "Ninguém se atrevia a perguntar: 'Quem és tu?', pois bem sabiam que era o Senhor". Ser cristão é estar, viver com o Senhor ressuscitado, aceitar, perceber e contar com a Sua presença ao nosso lado; alimentar-nos na refeição que Ele nos prepara e que é Ele próprio.

3. Ser cristão é, com efeito, deixar que o Senhor nos alimente com a Eucaristia. Jesus toma a iniciativa de chamar os discípulos. Mas, ao mesmo tempo, é Ele quem lhes prepara a refeição em que Ele próprio é o alimento: quando os discípulos desembarcam, já o Senhor tinha preparado brasas, peixe e pão.

Não há vida cristã sem este alimento, sem este banquete de discípulos - que é, afinal, banquete do Senhor: Jesus ressuscitado é o Pão distribuído, com o qual Ele se identificou na Última Ceia ("Tomai e comei, isto é o meu corpo") e que, agora, uma vez mais, entrega aos seus: "Chegou Jesus, tomou o pão e deu-lho" (21,13).

Mas Jesus é também o peixe, sinal da sua identidade e da sua Paixão. Sabemos como, desde o início do cristianismo, a palavra grega "peixe" (Ichthys) foi tomada como uma profissão de fé, pois constitui em grego (a língua franca daquele tempo) um acrónimo da expressão "Jesus Cristo, filho de Deus salvador" ("Iēsous Christos Theou Yios Sōtēr"). Por isso, o desenho do peixe era um sinal de reconhecimento entre os cristãos.

S. Gregório Magno, comentando esta passagem, afirma: "Aquele que, pela sua humanidade, pôde ser assado como um peixe, refaz as nossas forças com o pão da sua divindade. [...] Comeu peixe assado e pão para nos mostrar, pelo seu alimento, que sofreu a paixão na sua humanidade e que nos alimentou com a sua divindade" (Homilia XXIV,5).

Mas sabemos igualmente como os novos cristãos, surgidos das águas do baptismo, são ditos "pequenos peixes", cujo ambiente de vida é o próprio Senhor. Como recordava o Papa Bento XVI: "Para o peixe, criado para a água, é mortal ser tirado para fora do mar. Ele é privado do seu elemento vital para servir de alimento ao homem. Mas na missão do pescador de homens acontece o contrário. Nós homens vivemos alienados, nas águas salgadas do sofrimento e da morte; num mar de obscuridade sem luz. A rede do Evangelho tira-nos para fora das águas da morte e conduz-nos ao esplendor da luz de Deus, na verdadeira vida" (Homilia de 24 de Abril de 2005).

4. Mas a vida quotidiana do cristão é, também, uma vida em Igreja. "Quem crê, nunca está sozinho nem na vida nem na morte", afirmava também o Papa Bento XVI na mesma ocasião. E S. Cipriano, bispo de Cartago em meados do séc. III, afirmava: "Não pode ter a Deus por Pai aquele que não tiver a Igreja por mãe" (De cathol. Eccl. Unitate, 6). Quer dizer: para sermos cristãos, necessitamos uns dos outros - necessitamos da comunidade dos cristãos, necessitamos da Igreja: apesar de pecadores, imperfeitos e indignos, somos, uns para os outros, o suporte essencial para viver a fé e para viver na fé (cf. Ef 4,2).

É esta comunidade que podemos reconhecer nos discípulos que seguem na "barca de Pedro" - aquela barca de onde o próprio Jesus pregou às multidões e onde manifestou o seu poder sobre o vento e a tempestade; aquela mesma barca que hoje é conduzida pelo sucessor de Pedro.

Não há vida cristã isolada da Igreja. Todos necessitamos do testemunho de fé uns dos outros; necessitamos da correcção fraterna; necessitamos da entreajuda humana, da fé que recebemos uns dos outros - necessitamos daqueles que fazem parte da nossa paróquia, da nossa diocese e de outras comunidades espalhadas pelo mundo; necessitamos deles, sejam velhos ou jovens, sábios ou ignorantes, fortes ou fracos, pecadores empedernidos ou em decidido caminho de santidade: cada um de nós, baptizado, é indispensável aos outros. Necessitamos dos discípulos da primeira hora que estão claramente dentro da barca, e necessitamos também do fruto do seu apostolado, da sua pesca - 153 grandes peixes, o mesmo é dizer: cristãos presentes por todo o mundo. E necessitamos, sobretudo, do Espírito Santo que de cada um faz um só povo, o novo povo de Deus.

5. Finalmente, ser cristão é uma vida, uma existência, não uma teoria ou (muito menos) uma ideologia. Ser cristão é um viver concreto, real, que nos leva a arriscar atitudes concretas. Sabemos que muitas vezes erramos. Mais ai de nós se, por causa do medo de errar, ficarmos paralisados e deixarmos de ousar fazer o bem.

Ser cristão é deitar as redes, confiantes na palavra do Senhor. Como nos recordava S. Tiago Menor na IIª Leitura: "Se um irmão ou uma irmã não tiverem que vestir e lhes faltar o alimento de cada dia, e um de vós lhe disser: «Ide em paz; aquecei-vos bem e saciai-vos», sem lhes dar o necessário para o corpo, de que lhes servem as vossas palavras? Assim também a fé sem obras está completamente morta".

Celebramos, uma vez mais (há 501 anos que o fazemos!), o voto da nossa cidade que, assim, se entrega, confiante, à intercessão daquele que lhe tem valido em tantos momentos difíceis.

Quase saídos de uma grave situação de pandemia, mas de novo mergulhados em ambiente de guerra e de dificuldades económicas, à semelhança dos que nos precederam na vida da fé e na vida da cidade, confiemo-nos, uma vez mais, nas mãos de S. Tiago Menor.

+ Nuno, Bispo do Funchal