Senhor dos Milagres 2022
SENHOR DOS MILAGRES
Machico, 8 de outubro de 2022
"O povo de Israel [...] falou contra Deus e contra Moisés". Quando isso sucede - quando colocamos em causa Deus e a Sua bondade, o Seu amor por nós - o veneno das serpentes não tarda em surgir. A morte torna-se uma realidade. Compadecido, e para curar o povo deste mal, Deus convidou os israelitas a olhar para o madeiro erguido no meio do acampamento, a célebre "serpente de bronze".
Na leitura do evangelho, escutámos como o próprio Jesus fez seu aquele texto do Antigo Testamento: "Assim como Moisés elevou a serpente no deserto, também o Filho do Homem será elevado, para que todo aquele que acredita, tenha nele a vida eterna" - diz Jesus acerca de si mesmo.
Jesus é Aquele que realiza plenamente o que tinha sido anunciado por Moisés. A cruz é o verdadeiro lenho, de que a vara de Moisés era apenas a prefiguração. Quem olhar para Jesus crucificado - quer dizer: quem se confiar, quem se entregar inteiramente a este Deus que partilha os nossos sofrimentos e dores, esse é salvo.
Como podemos ser salvos por olhar para um crucificado? Como pode um homem morto dar-nos a vida? Como pode um crucificado, derrotado e condenado, ser vida para o mundo? Certamente, muitos foram os crucificados no tempo do Império romano e ao longo de toda a história: a morte de cruz foi, ao longo da história da humanidade, o modo mais horrível para dar a morte a um condenado. E muitos foram os inocentes e os bons que morreram numa cruz. Mas apenas a cruz de Jesus nos salva - a nós e ao mundo inteiro. Nela, Deus experimenta o mais baixo do existir humano.
Só a cruz de Jesus salva, porque só nela vemos Deus que voluntariamente quis viver a nossa morte para nos dar a vida, a Sua Vida.
a) Na cruz de Jesus vemos, desde logo, um homem. Um homem justo, sem pecado. Não cometeu crime algum. Não praticou a injustiça. Nele não habitou nunca o pecado. Ao longo da Sua vida, defendeu a verdade, proclamou o caminho do amor. Tornou-se um exemplo para todos. Exemplo para os seus discípulos (aqueles que, naquele tempo como agora, se propõem ser como Ele, viver como Ele); e exemplo para todos os seres humanos, porque o caminho da verdade e do amor, o caminho da paz, é o único capaz de construir um mundo novo.
Mas como nos é difícil a nós, seres humanos, marcados pelo pecado e pela morte, fruto da nossa liberdade mal usada, sermos confrontados pela verdade, pelo amor, pela paz!
Apesar dessa dificuldade (que é real e que nos faz tantas vezes escolher a mentira, a morte, o pecado), queremos, todos nós, percorrer o caminho de Jesus: queremos arriscar nele a nossa vida, mesmo sabendo que, tal como sucedeu com o Mestre, também para nós a cruz é sempre uma possibilidade final - e mesmo sabendo que, como sucedeu com o Senhor, muitos nos hão-de querer crucificar, se não num madeiro, pelo menos nas línguas venenosas da praça pública.
Apesar disso, queremos que a Verdade inspire as nossas escolhas; que o amor dê forma ao modo como vivemos uns com os outros; que a paz possa ser uma realidade à nossa volta.
b) Mas, no Crucificado, não vemos apenas um homem bom. No Crucificado, vemos Deus que partilha o nosso sofrimento, as nossas dificuldades. Esse mesmo sofrimento e dor que marcam a nossa existência, a existência de todos os seres humanos.
Porque - ricos ou pobres, famosos ou desconhecidos - não existe vida humana que não encontre, mais tarde ou mais cedo, a marca do sofrer. De uma ou outra forma.
Não procuramos o sofrimento, mas ele vem ao nosso encontro, como sinal, marca do nosso pecado, do nosso egoísmo - marca dessa realidade do pecado que partilhamos com todo o género humano; desse querer ser Deus e do querer viver como se Deus não existisse, que introduz na vida de cada um e de todos o sofrimento e a morte. "O povo de Israel [...] falou contra Deus e contra Moisés", escutávamos na Iª Leitura: e nós, quantas vezes falamos e agimos contra Deus e aqueles que Ele nos envia!
Deus poderia ter-nos abandonado nessa condição. Afinal, o nosso pecado é um acto de revolta contra Ele e contra o plano de vida que Ele tem para todos e para cada um. Mas Deus não nos abandona. Não porque o mereçamos, mas apenas porque Ele, de verdade, nos ama, a todos e a cada um.
Quando olhamos para a cruz, percebemos que, no sofrimento e na dor, cada um e todos, temos a companhia de Deus. Quando tudo parece desabar; quando os nossos projectos parecem evaporar-se; quando todos nos abandonam e tudo parece estar contra nós, olhando para a cruz de Jesus percebemos que Deus está connosco e permanece connosco, fazendo seu, partilhando o nosso sofrimento e a nossa dor. Como é diferente viver um momento de dor na solidão ou vivê-lo acompanhado por Deus! Quantas forças nos oferece esta companhia divina! Quantas energias faz surgir em nós!
c) Mas Jesus crucificado vai ainda mais longe: Ele não é apenas um exemplo exterior e uma companhia no sofrimento.
Quando tudo parecia ter terminado; quando parecia que o Seu caminho tinha chegado a um muro intransponível que é o muro da morte - tanto que os próprios discípulos fugiram, desanimados, e regressaram a suas casas, julgando que tudo tinha acabado e não passava de mais um ideal não concretizado, promessas que o vento tinha feito desaparecer - quando tudo parecia ter chegado ao fim, eis que a Vida de Deus derrota a própria morte, esse grande inimigo do género humano! Quando o pecado e a morte julgavam ter vencido o próprio Deus e derrotado para sempre a Vida, eis que, do sepulcro, surge o Ressuscitado, rompendo as cadeias e as portas da morte, vencedor final dessa batalha tremenda que é a vida humana ao longo da história!
E não se limita a ser o vencedor e a tomar para si os louros da vitória (o que já não seria pouco nem pequeno!), mas partilha connosco - quer partilhar com todos - essa vitória definitiva. Apenas nos pede que O olhemos, que nos entreguemos a Ele (a Ele, pregado na cruz) e que a Ele consagremos, confiadamente, toda a nossa vida.
É por isso que, hoje, queremos olhar, uma vez mais, para a cruz de Jesus. Como os nossos antepassados, queremos olhar para este Senhor dos Milagres de Machico - esta cruz que parecia ter sido irremediavelmente arrastada e destruída pela aluvião de 1803, mas que insistiu em permanecer connosco. Queremos olhar para este Senhor, e reconhecer nele o nosso Salvador. Feridos pelo pecado, pelo sofrimento e pela dor; feridos pelas nossas incapacidades e vergonhas, queremos olhar para Ele, encontrar nele o exemplo que queremos seguir, a companhia com quem queremos caminhar, a Vida eterna que queremos receber.
+ Nuno, Bispo do Funchal