Missa do Galo 2022
NATAL DO SENHOR
Missa da Meia-Noite
Sé do Funchal, 24 de dezembro 2022
"Rejubilam na vossa presença"
O Anjo do Senhor aproximou-se deles, e a glória do Senhor cercou-os de
luz" (Lc 2,9).
Velando pelo rebanho, desprezados e marginais a toda a sociedade; sem
tecto ou abrigo onde passar a noite, os pastores de Belém dão corpo e
presença aos "herdeiros" de David - também ele um guardador de
rebanhos e, depois, rei de Judá a quem fora prometida a vinda do Messias
(cf. 1Sam 16,11; 2Sam 7,14).
Foi àqueles pobres pastores que viviam nos campos, fora da cidade - longe
daquela cidade de coração endurecido, incapaz de acolher Deus e de
albergar a família de Nazaré - foi a eles - talvez os únicos pobres
disponíveis para, naquela noite, acolher semelhante notícia - foi a eles que
o Anjo foi enviado para anunciar o Evangelho: "Nasceu-vos hoje, na cidade
de David, um Salvador, que é Cristo Senhor" (Lc 2,11).
Dum modo silencioso e imprevisível, tinha - por fim! - chegado o tempo
escolhido por Deus para cumprir aquilo que, séculos antes, fora anunciado
por Miqueias: "E tu, Belém-Efrata, pequena entre as cidades de Judá, de ti
sairá aquele que há-de governar Israel. [...] Ele se erguerá e apascentará o
rebanho pela força do Senhor, com a majestade do nome do seu Deus" (Miq
5,1.3).
O tempo da preparação fora preenchido. O Messias, o Cristo prometido por
Deus e esperado como Salvador, tinha nascido e manifestava-se. Nesse
momento, a história de toda a humanidade recebeu finalmente o seu centro,
aquele ponto único (preparado e esperado desde o princípio), capaz de lhe
oferecer o sentido, o porquê do seu caminho e existência.
O Messias manifestava-se com toda a sua glória e, ao mesmo tempo, em
toda a fragilidade do "Filho do Homem": aquela fragilidade que não se impõe
mas sempre propõe; aquela fragilidade que se apresenta à liberdade de
todos, sem mais argumentos que não o próprio ser; aquela fragilidade de
quem quer necessitar do outro, do seu acolhimento e do seu amor, do seu
cuidado; aquela fragilidade que apenas o pobres são capazes de entender.
No Menino do Presépio, no Menino recém-nascido, envolto em panos e
deitado na manjedoira, manifestava-se o Messias.
Não espanta pois, que, no momento em que o Anjo evangelizou os pastores
de Belém (quer dizer: o momento em que lhes comunicou a feliz notícia e
eles encontraram o Salvador), não espanta que, nesse momento, a glória de
Deus se tenha manifestado, e a noite se tenha transformado em dia. Os
pastores escutaram a boa notícia, e tudo à sua volta se transformou. Tudo foi
inundado da glória de Deus - a natureza que os rodeava e o íntimo do seu
coração.
A "glória de Deus" é a expressão usada na Sagrada Escritura para falar
daqueles momentos em que a Presença divina se mostra ao ser humano na
sua majestade, peso, perfeição, bondade, santidade e beleza - mas
também na fragilidade de quem se expõe e arrisca o acolhimento da
liberdade humana.
Naquela noite, Deus manifestou a Sua glória àqueles pobres pastores,
tornando luminosa a sua existência e envolvendo-os completamente (S.
Lucas diz: "A glória do Senhor cercou-os de luz").
Ao mesmo tempo, aquilo que era inicialmente uma percepção apenas visual
(luz que tudo torna inteligível, compreensível), tornou-se também uma
percepção audível, musical, sinfónica. S. Lucas diz: "Juntou-se ao Anjo uma
multidão do exército celeste, que louvava a Deus, dizendo: Glória a Deus nas
alturas e paz na terra aos homens por Ele amados".
O ver e o ouvir, tudo se conjugava harmoniosamente e se tornava veículo
para conduzir ao encontro da Presença de Deus. É o que sucede quando
Céu e Terra se unem num ponto de singular coincidência: Deus e o Homem
unidos na fragilidade dum recém-nascido; a glória de Deus que se manifesta
na pequenez e humildade duma criança; e, ao mesmo tempo, o homem que
é elevado a lugar de epifania divina.
É esta Presença de Deus que, a partir desse momento, passará a iluminar
toda a história, toda a humanidade, em todos os tempos. É esta Presença
que passará a animar toda a urgente procura humana pelo sentido da
existência: "Vamos já a Belém - dizem os pastores uns aos outros - e
vejamos o que aconteceu e que o Senhor nos deu a conhecer. Foram às
pressas e encontraram Maria, José e o Menino deitado na manjedoura" (Lc
2,15-16).
Algo de muito semelhante sucederá com os Magos, no dizer do evangelho
de S. Mateus: "E eis que a estrela, que tinham visto no oriente, avançava à
sua frente, até que, ao chegar, parou sobre o lugar onde estava o Menino. Ao
ver a estrela, sentiram uma alegria imensa. Entrando na casa, viram o
Menino com Maria, sua mãe, e, caindo por terra, adoraram-no" (Mt 2,9-11).
E o evangelho de S. João narra como, mais tarde, André e outro discípulo,
depois de escutarem o Baptista, seguiram Jesus que os interrogou: "Que
procurais?" "Rabbi, onde moras?", responderam. Disse-lhes: "Vinde e vede".
"Então, eles foram e viram onde morava, e permaneceram com Ele naquele
dia". "Encontrámos o Messias" - dirá depois André a seu irmão Simão. E,
ainda, Filipe a Natanael: "Encontrámos aquele de quem escreveram Moisés
e os Profetas: é Jesus de Nazaré" (cf. Jo 1,35-45).
Alguns anos depois, um ancião de aspecto venerável dirá a Justino, filósofo
que procurava a verdade: "Reza para que, antes de mais, te sejam abertas
as portas da luz". E Justino recorda: "Pelo que me diz respeito, um fogo
irrompeu naquele momento na minha alma, fui tomado pelo amor dos
profetas e daqueles que são amigos de Cristo; reflectindo para comigo sobre
os seus discursos, encontrei ser esta a única filosofia certa e salvadora"
(Dial. Trif. 7,3.8,1).
E depois, tantos e tantos outros, ao escutarem o Evangelho (a mesma Boa
Notícia anunciada naquela noite aos pastores), foram tomados pela mesma
Presença divina e encontraram o mesmo Messias salvador: na presença
escondida de um pobre, na contemplação do mistério da cruz, na palavra ou
na vida de tantos, ou em qualquer outro momento em que Deus fez com eles
Natal - a glória do Natal!
Sabemos, nós que enchemos hoje as naves desta velha catedral (também
ela testemunha natalícia no meio desta nossa cidade), que não terminaram
nem o anúncio do Anjo, nem a procura humana pelo Salvador, nem a sua
manifestação natalícia.
E também sabemos, por experiência própria, o que significa vigiar na noite
do sofrimento e da incompreensão como os pastores de Belém; ou procurar
por caminhos desconhecidos, guiados por um qualquer sinal, como os
magos de terras longínquas; ou seguir discretamente os passos de Jesus,
como os discípulos da primeira hora; ou indagar de qualquer outro modo pelo
Salvador.
Mas sabemos, igualmente por experiência própria, a felicidade suprema de
ter, um dia da nossa vida, encontrado o Menino, assim como Ele sempre se
manifesta: pequeno, frágil, deitado na manjedoira, com sua Mãe; a felicidade
suprema de perceber interiormente: "Encontrámos o Messias".
Hoje, somos nós, que envolvidos pela Presença de Deus nesta noite santa
de Natal, nos vemos cercados pela luz da glória de Deus, missionários e
construtores da paz entre os homens. Somos nós que vemos e escutamos a
sinfonia do louvor divino - a glória presente no amor dos irmãos, presente
na vida quotidiana da Igreja, presente no bem que se faz por esse mundo
fora, presente quando alguém estende a mão e conduz para Deus.
É esta mesma Presença divina que, saída do Presépio de Belém, chega hoje
até nós, com o mesmo fulgor, com a mesma beleza daquela noite primeira,
daquele momento "zero" da história da humanidade.
É esta Presença que hoje aqui acolhemos, nesta Catedral funchalense, e de
que somos testemunhas uns para os outros - verdadeiros anjos que, com
suas palavras e com suas vidas, assumem também a missão divina de
contar, de proclamar a glória de Deus e de construir a paz, oferecida aos
homens capazes de acolher o seu amor.
+ Nuno, Bispo do Funchal