Homilia Solenidade S. João Evangelista

27-12-2024
Foto de Duarte Gomes
Foto de Duarte Gomes

S. JOÃO EVANGELISTA
Igreja do Colégio, 27 de dezembro de 2024

"O que vimos e ouvimos, isso anunciamos"

S. João, "o discípulo amado", narra nos seus escritos (seja no chamado "quarto evangelho", seja nas cartas que integram a lista do Novo Testamento) o mistério de Jesus — João que um dia foi chamado pelo Senhor e deixou as redes e o barco, juntamente com seu irmão Tiago (cf. Mt 4,21).

Como os demais discípulos, João conviveu de perto com o Senhor, fazendo parte do grupo dos Doze (cf. Mt 10,1-4). Foram três anos intensos de partilha, de vida comunitária, de ensinamentos, de caminhos percorridos. São João relata, portanto, aquilo que ele próprio experimentou, como aparece claro no início da sua Primeira Carta, como acabámos de escutar: "O que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos, o que tocámos com as nossas mãos" (1Jo 1,1). Quer dizer: São João inicia este seu precioso escrito — que é Palavra de Deus — afirmando a verdade histórica de Jesus: Jesus não é uma imaginação, uma ideia, um mito, um avatar; Jesus é um homem, alguém que João ouviu, viu, tocou.

Nisso, Jesus de Nazaré não se distinguia de qualquer outro ser humano: Jesus é um homem, limitado pela carne mortal e que comunica com aqueles que se encontram ao seu redor usando os sentidos; é uma interioridade que se diz e que, por meio do mundo material, atinge as interioridades dos demais — um homem comum, "em tudo igual a nós", dirá a carta aos Hebreus.

Mas naquele Jesus — diz-nos S. João —, naquele homem que falava, que era visto, que se podia tocar, era o Verbo de Deus que vinha ao encontro do seu povo e de toda a humanidade: "O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos, o que tocámos com as nossas mãos acerca do Verbo da Vida, é o que nós vos anunciamos". O "mistério de Jesus" é precisamente este: como é que a carne do carpinteiro de Nazaré é presença do "Verbo da Vida", quer dizer: presença daquela

realidade do "princípio" (cronológico e radical)?

S. João não se alonga em dissertações teológicas — isso será tarefa da reflexão posterior. Por meio da narração de diversos episódios que ele próprio presenciou ou que outros partilharam consigo, S. João mostra a revelação, o encontro com o Verbo da Vida (quer dizer: Verbo que é fonte, e Verbo que oferece constantemente a Vida de Deus).

A noção de "Verbo" era essencial para um judeu. Porque ela se encontra logo no início — no início da Escritura e no início da própria realidade criada. Com efeito, o primeiro livro da Bíblia afirma, no seu começo: "No princípio, Deus criou o céu e a terra. […] E Deus disse: 'Haja luz'. E houve luz. E Deus viu que a luz era boa" (Gen 1,1-4). Deus diz-se, cria tudo quanto existe, todo o universo, por meio da sua Palavra, do seu Verbo. É pois esta "Palavra inicial" que estava no princípio junto de Deus, e que agora, no meio da história, se faz carne na pessoa de Jesus. O mistério de Jesus é este: quando os discípulos tocavam Jesus, tocavam Deus; quando O escutavam, escutavam Deus; quando O viam, viam Deus.

Não era, portanto, fascínio, encanto, hipnose o que sucedia quando alguém se encontrava com Jesus de Nazaré. Era, tão simplesmente, o encontro com Deus — com Aquele que as nossas almas procuram, com Aquele sobre o qual se interroga a nossa inteligência, Aquele com quem a nossa oração dialoga. Ei-lo ali, nesta carne verdadeira, neste homem de "carne e osso" que é Jesus de Nazaré.

2. Se dúvidas existiram para João acerca deste "mistério" — e terão certamente surgido no seu espírito como no espírito dos outros discípulos e como no nosso espírito — eis que se desvaneceram naquele momento essencial do encontro do túmulo vazio: João percebeu, nesse momento, como todos os dados, todas as interrogações, todas as palavras, se integravam numa harmonia única que afirmava a verdade de Jesus: Deus feito homem, feito carne: "Viu e acreditou".

É verdade que já não era possível tocar, escutar, ver o corpo do Senhor, mas continuava a ser possível ver os sinais, perceber os testemunhos da presença do Verbo: o vazio do túmulo, as ligaduras no chão, o sudário enrolado à parte começaram a falar, a dar testemunho da verdade de Jesus manifestada plenamente na sua ressurreição.

A presença de Jesus não era agora comunicada pela sua carne mas pelos sinais que Ele tinha deixado. "Viu e acreditou" (Jo 20,8). O dinamismo da fé é o mesmo (Deus que vem até nós através do homem Jesus) só que através duma nova forma: "O que eram as qualidades da carne do Senhor passou para as espécies sacramentais", dirá, anos depois, S. Leão Magno. E, deste modo, o Verbo continua presente: podemos vê-lo, escutá-lo, tocá-lo. Vê-lo nos gestos sacramentais; tocá-lo, comungá-lo no Pão e Vinho eucarísticos; escutá-lo na Palavra da Escritura e no testemunho da fé da Igreja. E, assim, deixá-lo nascer verdadeiramente; deixar que Ele encontre o nosso coração, a nossa vida concreta.

3. Este é o dinamismo, o motor central da vida cristã que, por isso, se preocupa não apenas com as realidades espirituais mas também com as realidades carnais, humanas, políticas, sociais.

É este dinamismo central da vida cristã que encontramos, igualmente, na arquitectura desta igreja do Colégio e nesta celebração: o ouro da talha, a harmonia da construção, as imagens do santos que veneramos; os cânticos que entoamos; a comunidade que formamos — tudo isso é o modo procurado e encontrado para expressar materialmente a presença do Verbo no meio de nós — aquela presença a que a Palavra proclamada e a celebração eucarística oferecem uma realidade que ultrapassa o próprio mundo material.

Assim, devemos dizer que, ao construir esta igreja, os seus arquitectos, longe de pretender mostrar luxo ou opulência, tinham antes como objectivo expressar a presença do Verbo eterno do Pai através de realidades sensíveis, tal como sucedeu com S. João nos seus escritos. Para isso, os artistas deitaram mão dos melhores materiais que tinham à sua disposição: o ouro e a prata; a excelência da pintura; o saber gravar na madeira as formas que nos ajudassem a perceber que, se já neste mundo podemos contemplar semelhante beleza, quão belo será o Céu, quando gozarmos da presença divina!

Mas o que é para nós — sempre que entramos nesta igreja de S. João Evangelista do Colégio — um gozo e convite a erguer o nosso espírito para Deus, é também (e não em menor grau) uma missão: sim, como o Apóstolo que hoje celebramos, também nós recebemos o encargo de anunciar o que ouvimos e vimos, o que comungámos acerca do Verbo da Vida, "porque a Vida se manifestou e habitou entre nós".

Neste Natal em que, uma vez mais, celebramos a encarnação do Verbo, sintamo-nos todos enviados: que a nossa carne, a nossa vida concreta, apesar de todos o pecados e dificuldades, seja sempre a proclamação do Verbo que se faz carne para a todos manifestar a Vida divina e a todos convidar à sua contemplação eterna.

+ Nuno, Bispo do Funchal