Homilia Solenidade Imaculada Conceição

08-12-2023
Foto de Duarte Gomes
Foto de Duarte Gomes

Muito mais que relatar a procura humana (a sede de Deus que habita no coração de cada um de nós e que se encontra espelhada em tanta literatura que conhecemos), a Sagrada Escritura mostra como Deus nos procura e nunca desiste de cada um e de todos.

Envolvido no pecado, o ser humano vai procurando, com a sua iniciativa, desembaraçar-se como pode da situação de morte que a desobediência, que o afastamento de Deus, sempre causa: em vez de se confessar pecador, esconde-se de Deus que o procura; em vez de assumir o acto praticado, endossa a outro a responsabilidade por aquilo que não devia ter realizado.

Percorrendo a história bíblica, poderíamos encontrar inúmeros exemplos desta atitude. Mas não necessitamos sequer de recorrer ao texto bíblico: todos nós, já fomos Adão e Eva; já todos fizemos a experiência do que significa voltar costas a Deus e procurar agir e decidir pelos nossos critérios. Todos nós já fizemos a experiência do gosto amargo do pecado. A desobediência poderá, é certo, trazer consigo algum gozo, algum pequeno prazer; mas logo nos faz cair no abismo amargo de quem se percebe incapaz de olhar para Deus e, sobretudo, de deixar que Deus o olhe. Ficamos como o publicano do evangelho (Lc 18,13), incapazes de erguer os olhos ao céu, incapazes de suportar a presença de Deus — daquele que é todo amor, e cuja proximidade denuncia a nossa falta de amor, o nosso pecado.

Ocupados que estamos em esconder-nos, quase nem damos conta daquele primeiro anúncio (do "proto-evangelho", como lhe gostam de chamar os Padres da Igreja), do esboço da figura virginal de Maria que (ainda que em traços muito toscos) já aparece na passagem do Génesis que escutámos: "Estabelecerei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a descendência dela. Esta te esmagará a cabeça" (Gen 3,15).

Sim, é verdade. Logo depois de anunciar ao homem as consequências do pecado, nunca Deus deixou o género humano sem a promessa da salvação. Mesmo quando o pecado que cometemos nos faz ter vergonha de Deus e do seu olhar — mesmo aí — Deus não cessa de nos estender a mão, de realizar um gesto, de pronunciar uma palavra salvadora.

Se dúvidas existissem acerca desta vontade divina (vontade de salvação para cada um e para todos), elas ficariam dissipadas ao contemplar o Anúncio feito a Maria.

Não que a humanidade tenha evoluído; que tenha reflectido e tomado consciência daquilo que é, do mal causado pelas suas más acções, da desumanidade do pecado. Sabemos bem — igualmente por experiência própria — que, longe de aprendermos com os acontecimentos do passado e evitarmos os erros antes cometidos, nós, seres humanos, facilmente regressamos ao que já demonstrou ter consequências nefastas.

Basta, como exemplo triste, recordar a guerra que agora nos entra diariamente em casa através de imagens chocantes que nos vêm da Terra Santa. Não: o ser humano, por si, não é capaz. E se nos chocam as imagens da guerra vindas de lugares distantes, deveria igualmente chocar-nos a visão de tantos que, bem aqui ao lado, vivem na pobreza (na pobreza do consumo de drogas; na pobreza da desorientação moral; ou, simplesmente, na pobreza de quem não consegue, com o seu trabalho, um digno sustento para a família). Por si, com as suas forças, o ser humano facilmente semeia dor e destruição — não bastam os conhecimentos científicos e técnicos, nem basta a boa vontade de alguns.

Sabemos como a humanidade progride, diariamente, para novos patamares da técnica — e que bom progredirmos em conquistas técnicas e científicas! Mas sabemos, igualmente, como em termos morais, em opções éticas que sempre é necessário realizar, continuamos a marcar passo. Somos mais semelhantes a pequenos vermes que a gigantes.

Também a Virgem Maria não é o fruto de uma qualquer conquista, de um qualquer progresso humano. A graça que preenche plenamente a sua existência não é sequer uma conquista própria.

A tradução portuguesa que escutámos do texto de S. Lucas não reflete bem a intenção do evangelista. Se nos ativéssemos mais ao original grego, em vez de "Cheia de Graça", deveríamos dizer antes: "Plenamente Agraciada". Porque a graça que preenche e conduz a Virgem Maria em toda a sua vida Imaculada; a graça que a faz ser o início de uma nova humanidade, de um novo modo de existir como ser humano (a ponto de os primeiros cristãos lhe chamarem "a nova Eva"), não é própria dela, mas de Deus. Ela apenas acolhe, sem qualquer divisão, a plenitude de graça com que o Pai a fez ser.

Foi Deus quem agraciou a pessoa de Maria de Nazaré, "antes que do nada surgissem os mundos", como dizia Santo Atanásio. E fê-lo em atenção aos méritos de Jesus, como proclamou o Beato Pio IX, ao definir o dogma da Imaculada Conceição. Assim, Deus não só preparou uma digna morada para o Seu Verbo como também predispôs a natureza humana de Maria. Desse modo, ao fazer-se carne, o Verbo de Deus (sem mancha de pecado, Imaculado) pode receber uma natureza humana sem mancha de pecado.

Ao tomar a iniciativa de criar a Virgem Maria adornando-a de todas as graças, Deus dá início a um novo acto criador, uma obra plenamente concluída na ressurreição de Jesus — melhor: na descida do Espírito Santo sobre os apóstolos. É de verdade uma nova humanidade que surge, fruto não das conquistas humanas mas da graça divina.

É uma nova atitude para com Deus e para com o próximo, que aparece quando deixamos que Deus tome a iniciativa e determine a nossa existência.

Dessa nova humanidade, participamos também nós os baptizados, agora ainda de um modo não perfeito, mas esperando a plena comunhão com o Pai na vida eterna. Assim o reconhecia S. Paulo no texto que escutámos como IIª Leitura: "Bendito seja Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que do alto dos Céus nos abençoou com toda a espécie de bênçãos espirituais em Cristo. N'Ele nos escolheu, antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis, em caridade, na sua presença. Ele nos predestinou, conforme a benevolência da sua vontade, a fim de sermos seus filhos adotivos, por Jesus Cristo, para louvor da sua glória e da graça que derramou sobre nós, por seu amado Filho" (Ef 1,3-6).

Neste momento, reconhecemos ainda em nós, diariamente, os efeitos do pecado de que foi isenta a Virgem Maria. Mas em nós, reconhecemos também a força da graça divina — única capaz de o superar. E reconhecê-la-íamos muito mais, se nos dispuséssemos a acolhê-la como fazem os santos e como fez Maria de Nazaré. Não tenhamos dúvidas de que, se assim fosse, a própria humanidade juntaria o progresso moral, a justiça e a paz, às conquistas da técnica.

Enquanto louvamos a Deus pela Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria, disponhamos o nosso coração a acolher a iniciativa salvadora de Deus, que — hoje como no princípio — nos procura, nos estende a mão e nos ergue, oferecendo-nos a sua vida.

Apenas essa atitude — a atitude de quem permite que a Palavra se faça carne, se faça vida e seja o verdadeiro princípio de vida, permitirá a cada um e a todos, à humanidade inteira, alcançar um verdadeiro progresso digno do ser humano.


Catedral do Funchal, 8 dezembro 2023


+ Nuno, Bispo do Funchal