Homilia Solenidade do Corpo de Deus 2024
SOLENIDADE DO CORPO DE DEUS (Ano B)
Largo do Colégio, 30 de Maio de 2024
"Tomai: isto é o meu Corpo"
· Maravilhamo-nos
"Tomai: isto é o Meu Corpo". As palavras de Jesus nos evangelhos jamais são gratuitas, jamais pronunciadas por acaso ou para contentar a curiosidade de alguns. Todas as suas palavras são pronunciadas — mesmo no evangelho de S. Marcos, tido por alguns como o mais simples e popular — todas são pronunciadas pelo "Filho de Deus".
Com efeito, este título "Filho de Deus" (quer dizer: da mesma substância de Deus) é atribuído a Jesus seja no início do evangelho (cf. Mc 1,1: "Princípio do evangelho de Jesus, Cristo, Filho de Deus"), seja praticamente no seu final, quando aparece na boca do centurião romano que, confrontado com a morte do Senhor, exclama: "Verdadeiramente este homem era Filho de Deus!" (cf. Mc 15,39).
Por isso, quando Jesus, na Última Ceia, toma o pão pascal, recita a bênção e o distribui aos discípulos, pronunciando as palavras sacramentais: "Tomai: isto é o meu Corpo", devemos entender e acolher os seus gestos e as suas palavras como palavras e gestos do "Filho de Deus"!
Assim, desde esse momento, a Igreja sempre procurou aprofundar o significado e as consequências dessas palavras e gestos. Fizeram-no os teólogos e os místicos; fizeram-no o magistério e os pregadores… Fê-lo o povo de Deus, também aqui nestas nossas Ilhas, como nos mostram as lápides colocadas nas portas das nossas mais antigas igrejas: "Louvado seja o Santíssimo Sacramento da Eucaristia". Isso mesmo queremos fazer, também nós, nesta celebração que reúne membros de todas as comunidades da nossa diocese.
Diante destas palavras de Jesus que atravessam os tempos ("Tomai e comei: isto é o Meu Corpo"), a nossa primeira atitude outra não pode ser senão aquela de nos maravilharmos.
Sim, surpreendemo-nos e maravilhamo-nos porque percebemos Deus connosco, no meio de nós. "Tomai: isto é o Meu Corpo": Sou Eu que, doravante, Me manifesto não já por meio do Corpo de carne mortal, nascido da Virgem Maria, mas por meio do Meu Corpo eucarístico. E, deste modo, estarei convosco até ao fim — até ao momento final do universo, no limite de todas as geografias, mas também (sobretudo) no mais profundo de todos os corações que me queiram acolher e se deixem, desse modo, alargar, transformar.
Maravilhamo-nos com esta presença divina no meio de nós. Não bastavam as maravilhas da criação ou as leis da natureza que os cientistas e pensadores procuram encontrar e interpretar. Não bastava, sequer, o universo misterioso de cada ser humano, querido singularmente por Deus, que em cada um derrama todo o seu amor. Nem era suficiente a Palavra dos profetas e de toda a Escritura, maravilha que converte, transforma e ilumina hoje a nossa existência. Nem sequer era bastante a vida das comunidades cristãs espalhadas pelo mundo e, sobretudo a vida dos santos, que nos interpelam e mostram como podemos viver de modo diferente esta nossa vida tantas vezes corriqueira e vazia.
Não. A imaginação divina foi muito mais além. Excogitou um milagre quotidiano de Presença, um Pão de Vida Eterna feito alimento para todos, que nos une a Jesus ressuscitado e nos faz membros uns dos outros. Uma fragilidade e humilhação do próprio Deus, que se torna força, que transforma e oferece a qualidade de vida daquele que o comunga e do mundo inteiro — porque Deus, assim presente na história, oferece uma nova qualidade à vida do mundo.
Perante este mistério que jamais algum ser humano poderia ter imaginado e, muito menos, criado, a nossa primeira atitude só pode, portanto, ser de surpresa, de maravilha, de espanto.
· Adoramos
Mas, logo a seguir, ao espanto junta-se a adoração. Sim, a adoração, essa palavra e essa atitude tão estragadas pelo uso quotidiano que a faz um simples sinónimo de "gostar muito".
A adoração: diante de Deus e da sua Presença no meio de nós e connosco, a resposta humana necessita de ir mais além de um simples gosto subjectivo ou emocional. A consciência do Deus connosco transforma-se em consciência da nossa pequenez e indignidade; em consciência da distância interior que separa a criatura do Criador, o pecador inveterado do eternamente santo, a morte que nos habita da Vida Eterna.
Caímos de joelhos, senão completamente por terra: "Afasta-te de mim, Senhor, que sou um homem pecador" (Lc 5,8), pediu Pedro, prostrando-se, quando, no meio do mar, tomou consciência de se encontrar diante do Deus Salvador.
Mas, em simultâneo, do nosso coração brota uma gratidão enorme, infinita, ao percebermos esta Presença divina. A gratidão de nos percebermos infinitamente amados por este Deus que nos quer, a cada um de nós.
· Convertemo-nos
O infinito amor de Deus quase nos faz desistir, quando olhamos para a nossa realidade, para a nossa fraqueza, para a nossa indefinição. Mas esta Presença eucarística — esta Presença divina —, este "excesso de amor" com que cada um de nós se percebe amado na sua singularidade, não apenas nos dá consciência da distância que separa o nosso coração do coração de Deus, como nos dá a força e a ousadia da conversão.
É o fruto da presença da graça, essa realidade imerecida e grande, forte e incómoda, que nos faz assumir como meta a realidade maior da santidade. A Eucaristia propõe-nos a santidade como meta, a conversão quotidiana como meio, e a confiança no Senhor como amparo.
O nosso caminho poderá ser (é certamente) um percurso realizado com hesitações e desvios. Mas quando, ao nosso lado, o próprio Jesus ressuscitado nos acompanha, como fez com os discípulos de Emaús, como poderemos nós deixar de sentir que o nosso coração se torna ardente, e que a conversão é possível?
· Vivemos
E eis que todo este reboliço interior, este fogo ardente de vida, se transforma em existência partilhada, comungada. Primeiro com os irmãos na fé e, depois, com o mundo inteiro que necessita de conhecer a maravilha do amor de Deus.
E tudo se transforma em respeito e promoção da dignidade de todos; e transforma-se em pão partido e repartido; e transforma-se em mão estendida, em palavra proferida no silêncio ou na praça pública, em vida partilhada.
A Presença do amor divino jamais poderia ficar no segredo. É manifestação pública, caminho realizado por entre as ruas da cidade. É, sobretudo, quotidiano, silencioso mas operante, que transforma e realiza os gestos que deixam de ser nossos para serem os gestos da própria caridade divina.
Celebremos a Eucaristia. Dentro de momentos, uma vez mais, escutaremos aquele "Tomai e comei: isto é o meu Corpo". E, logo depois, havemos de O mostrar à cidade, sem medo nem vergonha. Mas, sobretudo, vivamos em cada instante (no espanto, na adoração e conversão) este excesso de amor divino que toma conta de nós, e que quer, tão simplesmente, tomar conta do mundo inteiro.
+ Nuno, Bispo do Funchal