Homilia Solenidade de S. Tiago Menor

SOLENIDADE DE S. TIAGO MENOR
Santa Maria Maior, 1 de maio de 2025
"Vós que temeis o Senhor!"
1. "Vós que temeis o Senhor, confiai na sua misericórdia e não vos afasteis". Reconheçamos que, aos nossos ouvidos, estas palavras soam estranhas. Elas parecem entrar em contraste com aquelas outras de S. João: "No amor não há temor. […] Quem teme não é perfeito no amor" (1Jo 4,18). Procuremos, pois, perceber como nos encontramos perante dois convites diferentes que a Sagrada Escritura nos faz, e como o temor de Deus é importante quando é dom do Espírito Santo.
Na passagem de S. João acima referida, a palavra "temor" é usada no sentido de "medo": é o medo que sentimos quando nos encontramos perante uma ameaça. Por isso, o salmista pode afirmar: "O Senhor é minha luz e salvação, de quem terei medo?" (Sl 27,1). Ao contrário, na passagem de Ben-Sirá que escutámos na Iª Leitura, o temor é uma realidade que decorre do amor de Deus: "Vós que temeis o Senhor, confiai na sua misericórdia". Quer dizer: "esperai os seus benefícios", "amai-o e iluminar-se-á o vosso coração" (cf. Prov 2,1.5).
2. Que temor é este? O maior teólogo católico do século XIX, S. João Henrique Newman, dedicou-lhe um dos seus Sermões (Parochial and Plain Sermons, V, Sermon 2), assumindo "temor" como sinónimo de "reverência". Dizia ele que, nesta nossa vida, apesar de ainda não vermos Deus face a face, O vemos "como num espelho" (1Cor 13,12). Somos como Moisés que, apesar de não ter entrado na Terra prometida, a viu de longe (cf. Dt 32,48-52).
O mesmo é dizer: a meta da nossa vida é a felicidade de poder contemplar e viver para sempre na Presença de Deus; mas já nesta terra nos encontramos na Presença divina. Em cada momento, devemos tomar consciência deste "contemplar ao longe" para dele vivermos e ensinarmos a viver.
Percebemos a Presença divina (a Presença de um Outro, de uma realidade infinitamente maior) através de sinais, de "vestígios" — umas vezes por meio de realidades surpreendentes e admiráveis, outras no meio do quotidiano, quase na banalidade do existir. Discernir esta presença divina, é dom do Espírito Santo e tarefa principal do cristão. Darmo-nos conta dela muda o nosso modo de viver: uma coisa é viver despreocupado, procurando sugar o máximo de cada momento da existência; outra é viver na Presença de Deus, na alegria que ela sempre causa em nós, e percebendo que cada escolha da nossa liberdade se encontra cheia de consequências também para a nossa relação com Deus.
Newman dizia: mesmo que fôssemos puros como anjos — que, segundo a Escritura, com temor cobriam o rosto na Presença do Senhor (cf. Is. 6,2) —, mesmo nesse caso devemos temer. O temor é aqui sinónimo de "reverência", "amizade", "amor".
Com efeito, falamos de modo diferente acerca dos nossos amigos quando estamos na sua presença ou na sua ausência. Mas, se eles estão presentes, nem nos atrevemos a referir a um terceiro a sua opinião ou os seus sentimentos: a amizade inspira-nos o temor de lhes sermos infiéis. Essa reverência, esse "temor" é tanto maior quanto consideramos maior que nós a pessoa de quem falamos e que se encontra na nossa presença. Ainda que a amizade nos autorize a estar com algum à-vontade, a percepção da sua presença faz nascer em nós uma cada vez maior admiração, uma cada vez maior reverência.
O temor é, portanto, um dos frutos da consciência da Presença de Deus ao nosso lado, não como espia ou acusador, mas como Presença que acompanha, que connosco faz caminho, que ajuda a discernir e a interpretar a própria realidade. Apesar de todo o amor, apesar mesmo de toda a ousadia com que lhe dirigimos a palavra na oração, apesar do carinho com que Deus nos trata, temos a consciência da infinita distância que nos separa dele. Ele está connosco e ao nosso lado e, por isso mesmo, trememos, ficamos emocionados e respeitosos. Não se trata duma presença acusadora, à procura de um qualquer erro para aplicar o correspondente castigo. Trata-se da Presença de Alguém que nos conhece e ama; que nos acompanha e conduz.
3. Que testemunhos da Presença divina podemos encontrar na nossa cidade do Funchal? Olhemos alguns deles, sem a pretensão de esgotar o seu elenco. Comecemos pelos mais evidentes. É o caso das inúmeras igrejas — das mais antigas às contemporâneas, das mais adornadas com obras de arte às mais simples. Basta olhar de um miradouro para este nosso anfiteatro citadino e distinguiremos, com facilidade, um bom número de campanários que nos falam da Presença de Deus no meio de nós.
Mas poderíamos, também, olhar para alguns nomes de ruas: Rua do Bom Jesus, R. De Santa Maria, Rua da Conceição, Rua de S. Francisco, Av. Santiago Menor… Ou, então, olhar para algumas montras da nossa cidade e reparar na presença de pequenas imagens de Jesus, de Nossa Senhora, de algum santo em quem se procura proteção. Ou darmo-nos conta, também, da presença da cruz em tantos recantos. Ou ainda, se estivéssemos no Natal, de como as celebrações do nascimento do Senhor a todos envolvem num clima festivo e de amor para com todos. Olhando para estes sinais, percebemos claramente como os funchalenses, desde sempre, quiseram viver na Presença de Deus, procurando a Sua proteção e acolhendo as Suas correções.
Mas estes são, apenas, sinais menores. Muito mais importantes são aqueles outros sinais vivos da Presença de Deus: a Eucaristia, as pessoas, as famílias, os lares onde se respira a presença de Jesus. Se virmos bem, a própria cidade é, em si mesma, enquanto vida comunitária, entreajuda fraterna, Presença de Deus no meio do mundo. Com efeito, a cidade proclama ao mundo inteiro que a chave para entendermos a realidade não é conflito mas o amor; não é o indivíduo mas a comunidade trinitária de Deus, princípio e fim de tudo. De um modo particular, os pobres e mais necessitados são uma presença de Deus que clama, que nos convida a olhar para o outro, a deixarmos o egoísmo do pecado e a olhar decididamente o "nós" da salvação.
Celebramos hoje o Padroeiro da nossa cidade e da nossa Diocese, S. Tiago Menor. Num momento de aflição, os nossos antepassados confiaram-lhe a guarda da cidade. Tomemos, também nós, consciência da nossa tarefa de procurar construir uma cidade cada vez mais humana; de construir uma cidade onde viver na Presença de Deus, no seu temor, possa ser um dom e uma felicidade — uma cidade que, já neste momento, nos faça saborear antecipadamente a felicidade eterna do Céu.
+ Nuno, Bispo do Funchal