Homilia Ordenações

26-04-2025
Foto de Duarte Gomes
Foto de Duarte Gomes

SÁBADO DA SEMANA PASCAL

Ordenações

Sé do Funchal, 26 de abril de 2025

"Não podemos calar o que vimos e ouvimos"

1. Pedro e João estavam prisioneiros. O Sumo Sacerdote Caifás tinha pensado que tudo ficaria resolvido com a execução de Jesus (cf. Jo 11,50). Mas tal não sucedeu. Os acontecimentos impuseram-se: o Espírito Santo, derramado sobre os Apóstolos, tinha derrubado medos e incapacidades. O Espírito passara a ser o grande protagonista dos acontecimentos.

Olhando para os homens que tinham à sua frente, os membros do Sinédrio verificaram que eram "iletrados e plebeus": sem instrução escolar e de baixa condição social — homens do povo, pescadores da Galileia. Que influência poderiam ter diante dos poderosos e mesmo diante dos outros plebeus como eles?

No entanto, reconheciam: "Que se realizou por meio deles um milagre, sabem-no todos os habitantes de Jerusalém e não podemos negá-lo". Referiam-se à cura do coxo de nascença, acontecida dias antes, à entrada do Templo. Mas, entre o milagre da presença de Deus e o que julgavam ser a sua inteligência, os membros do Sinédrio preferiram esta última. Cegos que estavam com as suas capacidades intelectuais e com a sua categoria social, foram incapazes de reconhecer a ação do Espirito de Deus. Bem se lhes aplica a advertência de Paulo na primeira Carta aos Coríntios: "A loucura de Deus é mais sábia do que os homens, e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens" (1Cor 1,25). Cheios de si e das suas capacidades, perderam o tempo favorável do Espirito.

2. Nem Pedro e João discutiram esses raciocínios. Sendo a resposta tão óbvia, os Apóstolos deixaram o Sinédrio enredado nas suas discussões estéreis. Para os apóstolos, uma coisa era clara: "Nós não podemos calar o que vimos e ouvimos".

Para Pedro e João, não se tratava de difundir as suas convicções religiosas (que poderiam ter afirmado); nem se tratava da sua opinião ou interpretação da Lei de Moisés e dos tratados a que tinha dado origem. Tratava-se, isso sim, de um acontecimento que tinham vivido e experimentado, e que se lhes tinha imposto: "O que os nossos olhos viram, o que os nossos ouvidos escutaram, o que as nossas mãos tocaram acerca do Verbo da Vida — porque a Vida se manifestou e nós vimos a sua glória — isso vos damos a conhecer", escreverá mais tarde o mesmo João, ao iniciar a sua primeira carta (1Jo 1,1-2).

O anúncio apostólico é o anúncio de um acontecimento objectivo e histórico: "Nós somos testemunhas de tudo o que Ele [Jesus de Nazaré] fez, na região dos judeus e em Jerusalém. Eles mataram-no, suspendendo-o num madeiro, mas Deus ressuscitou-o ao terceiro dia e permitiu-lhe manifestar-se, não a todo o povo, mas às testemunhas de antemão designadas por Deus, a nós que comemos e bebemos com Ele, depois de ter ressuscitado dos mortos" (Act 10,37-42).

É isso que aqueles dois pescadores ignorantes anunciam. É isso que não podem calar: o acontecimento único da intervenção de Deus, em primeira pessoa, na história humana — acontecimento no qual eles tinham sido envolvidos como testemunhas.

Várias vezes o Papa Francisco citou aquela afirmação lapidar de Bento XVI: "No início do ser cristão, não está uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo" (Deus é amor, 1).

"Um acontecimento que dá à vida um rumo decisivo". Se tomar consciência disto; se deixar-se envolver por este acontecimento é decisivo para todos — de tal modo que apenas a partir desse momento nos podemos dizer cristãos — é-o de uma forma muito particular para um sacerdote e para um diácono. Todo o afã evangelizador, tudo o que vivemos e somos, tudo o que anunciamos tem a sua raiz neste acontecimento. Mesmo quando ensinamos doutrina (e devemos fazê-lo sempre), o nosso objectivo é conduzir os nossos irmãos ao encontro deste Senhor, para que possam viver dele, caminhar com Ele, permanecer em Sua casa. É permitir que, encontrando este Jesus, Ele lhes ofereça o sentido da existência.

3. Como Pedro e João, também nós não podemos calar. No nosso tempo, não faltam sinédrios que continuam a olhar para os cristãos com o mesmo desdém: "São ignorantes plebeus; mandamo-los calar, e tudo se resolverá…".

Na sua peça Salomé, Óscar Wilde coloca na boca de Herodes afirmações que nos fazem sorrir, mas que retratam bem o modo de pensar de muitos contemporâneos. A dado momento, informam Herodes de que um certo Jesus realizava milagres: que mudava água em vinho; que tinha curado leprosos e ressuscitado mortos. Cheio de si e do seu poder, Herodes afirma: "Não quero isso, não consinto que os homens ressuscitem. Esse homem deve ficar sabendo que o proíbo de ressuscitar os mortos". Por fim, lá se conformou: "Se o acharem, porém, digam-lhe que assim falou Herodes, o rei: 'Proíbo que ressuscites os mortos'. Podes mudar a água em vinho, curar leprosos e cegos... podes fazer tudo isso se quiseres. Nada sei de contrário a esses actos, e até acho bondade curar um leproso. Ninguém, entretanto, poderá ressuscitar os mortos. Seria horrível se um morto tornasse a viver".

Ainda que com algumas reticências, os "Sinédrios contemporâneos" continuam a tolerar que nós, cristãos, façamos alguns "milagres": que tratemos dos idosos e dos doentes, que cuidemos dos bens culturais, que nos ocupemos com a educação. O que continua para eles a ser escândalo é que falemos da morte e da ressurreição do Senhor. E que levemos a humanidade a confrontar-se com ela; que continuemos a anunciar o mundo novo iniciado na Páscoa.

Nós, no entanto, não podemos calar o que vimos e ouvimos. "Mais tarde, apareceu aos Onze, quando eles estavam sentados à mesa, e censurou-os pela sua incredulidade e dureza de coração, porque não acreditaram naqueles que O tinham visto ressuscitado. E disse-lhes: «Ide por todo o mundo e proclamai o Evangelho a toda a criatura»".

Gostava de dizer o Papa Francisco: "A nossa salvação não é assética, a partir de laboratório ou de espiritualismos desencarnados […]; discernir a vontade de Deus significa aprender a interpretar a realidade com os olhos do Senhor, sem necessidade de fugir daquilo que acontece ao nosso povo na situação real onde vive e sem aquela ansiedade que induz a procurar uma saída rápida e tranquilizante guiada pela ideologia do momento ou por uma resposta pré-fabricada, ambas incapazes de se ocuparem dos momentos mais difíceis e até obscuros da nossa história".

E, caros Tiago e Marcos, quando for necessário reavivar o dom que ides receber, não esqueçais nunca as quatro proximidades de que falava o Papa Francisco: "Eis as proximidades — gostava ele de dizer — que são próprias do sacerdote: próximo a Deus na oração, próximo ao bispo que é vosso pai, próximo ao presbitério, aos outros sacerdotes, como irmãos, e próximos ao povo de Deus. Tende sempre diante dos olhos o exemplo do Bom Pastor, que não veio para ser servido, mas para servir e procurar e salvar o que estava perdido" (12 maio 2019).

Caríssimos Tiago e Marcos: ainda que em graus diferentes, Cristo vai, dentro de momentos, confiar-vos, fazer-vos participantes da missão que confiou aos Apóstolos. Na nossa Diocese, ireis encontrar muitos cristãos que, mesmo sem grandes conhecimentos doutrinais, serão para vós testemunhas do acontecimento da ressurreição. Acolhei o seu testemunho.

E, ao longo da vossa vida, ireis também encontrar muitos Sinédrios, que vos tentarão proibir o anúncio da ressurreição. Que o Espírito Santo possa ser o verdadeiro protagonista de toda a vossa vida e do vosso ministério. Que Ele vos dê sempre a coragem de dizer: "Nós não podemos calar o que vimos e ouvimos".

+ Nuno, Bispo do Funchal