Homilia no Senhor dos Milagres

08-10-2019

SENHOR DOS MILAGRES

Machico, 8 de outubro de 2019

"Deus amou tanto o mundo, que entregou o seu Filho Unigénito, para que todo o que acredita nele não pereça mas tenha a vida eterna": deste modo, como acabámos de ouvir, resume o evangelista S. João a iniciativa insistente de Deus em nos salvar.

O que é a salvação? É a libertação da nossa incapacidade de vivermos plenamente e para sempre. Por nós, não somos capazes de viver na felicidade perfeita e eterna, por muito que a desejemos, por muito que a procuremos e que lutemos por ela.

S. João começava por nos mostrar a razão dessa vontade divina de nos salvar: "Deus amou tanto o mundo". O mesmo é dizer: Deus amou-nos, amou os nossos antepassados e ama-nos a nós que hoje aqui estamos. A salvação é fruto desse amor que Deus tem por cada um de nós. Convençamo-nos de uma vez por todas: Deus não nos salva sem nós - não nos quer salvar sem a nossa colaboração; mas nós nunca nos conseguiremos salvar sem Deus!

Não é cada um de nós que se salva a si mesmo, nem é a sociedade, com as suas instituições e organizações, com as suas leis e preceitos que nos pode oferecer a vida feliz para sempre. Muitas vezes (demasiadas!) tentámos fazê-lo, tentámos salvar-nos a nós mesmos, e essas tentativas resultaram apenas em guerras, injustiças e morte, como sucedeu no passado século XX, e como continuará a suceder todas as vezes em que procurarmos fabricar por nós a salvação. Precisamos de Deus. Precisamos todos de um Deus que nos salve. E Deus sabe disso. Sabe que, por nós, com as nossas forças, com o nosso trabalho e esforço, por nós apenas, nunca conseguiremos viver com Ele e como Ele. Sem Deus nunca conseguiremos uma sociedade justa onde exista lugar para todos, onde todos se vejam plenamente respeitados na sua dignidade. Deus não nos criou para vivermos sozinhos. Criou-nos para vivermos com Ele e uns com os outros. E, por isso, Ele insiste em nos salvar. E por isso Ele não desiste nunca, de todos e de cada um. Deus nunca desiste de nós!

Ele quer salvar a todos. Com efeito, Deus não se fez homem, há dois mil anos, em Jesus de Nazaré, apenas para salvar alguns - aqueles, porventura, que viviam junto dele, naquele tempo e naquele lugar. Nem Deus se contenta em salvar hoje apenas uns quantos, porventura mais perfeitos, melhores que os outros. Não: Ele quer salvar a todos. Mesmo aqueles que a nossos olhos parecem não ter salvação. E Deus não desiste de ninguém.

Para isso, não se limitou a enunciar um conjunto de normas, de leis, uma série de pensamentos, de ideias que devemos cumprir para vivermos melhor e conseguirmos, com a nossa inteligência e as nossas forças, construir um mundo melhor. Não: Deus entregou o Seu Filho Unigénito. Entregou-se a Si mesmo. Ou seja: a salvação é a vida de Deus no meio de nós (Deus connosco) - vida entregue; vida de quem nada guarda para si; vida que se oferece até à morte. A salvação é Jesus que se entrega por nós e a cada um de nós.

Foi para nos salvar que Deus assumiu a nossa carne e sofreu a morte. A morte que sempre nos vem ao encontro e que nos aparece quase como destino universal inevitável, viveu-as o próprio Deus na cruz. Não foi uma morte fingida. Não foi uma morte confortável. Não foi uma morte vivida com ligeireza. Pelo contrário: foi uma morte sofrida; dramática; amada - a morte vivida por Deus que não olha à Sua condição divina, mas antes se faz um de nós, servo, até à morte e morte de cruz, como recordava S. Paulo na IIª leitura.

Nem a salvação consiste apenas em conseguirmos viver melhor aqui nesta terra. De que nos serviria viver melhor por uns dias ou anos, se continuássemos condenados à morte, à destruição final? Nós, seres humanos, trazemos connosco não apenas o desejo de viver felizes aqui e agora; trazemos connosco esta vontade, este sonho, este desejo de viver felizes para sempre, de partilhar a vida de Deus, a vida eterna. A eternidade, o "para sempre", é algo que se encontra diante dos olhos e do coração de cada ser humano, de todos os seres humanos, vivam eles na Europa ou num outro qualquer continente, sejam eles rodeados de todos os sofisticados meios tecnológicos ou se vejam condenados a sobreviver numa qualquer selva do nosso planeta, longe do que chamamos habitualmente "civilização". Todos trazemos connosco a ânsia da vida eterna. A nossa morte, viveu-a o próprio Deus, em primeira pessoa, em nosso Senhor Jesus Cristo, para que a Sua vida (a vida eterna) a possamos nós viver com Ele, por Ele e nele. Este é o único caminho da salvação.

E, ao entregar-Se à morte, Jesus abraçou toda a história - o mesmo é dizer: abraçou-nos, envolveu-nos a todos nós. A morte que viveu é a morte de todos nós. Nesse gesto único, envolveu-nos a nós que vivemos hoje, nesta ilha tão distante da Terra Santa, e neste momento tão longínquo do seu tempo. Ele continua a vir ter connosco. A viver a nossa morte para nos dar a vida. A querer falar-nos ao coração. A querer transformar-nos. Para que nós, cada um de nós e todos, possamos ter a vida, e a vida em abundância.

A celebração de hoje é, precisamente, um desses sinais - um sinal do amor persistente de Deus que não se quer distante dos homens e mulheres desta nossa ilha, mas antes sempre regressa, sempre insiste, sempre bate à porta do nosso coração para nos oferecer a vida.

A Capela do Senhor dos Milagres é um dos lugares de culto mais antigos da Madeira: sabemos que por aqui aportaram os primeiros navegadores; sabemos que viviam seriamente a fé; que eram sinceramente cristãos; sabemos que, desde o princípio, juntamente com casas para habitar, ergueram pequenas igrejas, sinais de Deus presente no meio do seu povo, no meio da vida das gentes da Madeira. Não nos espante, portanto, que a imagem do crucificado que nesta capela se venera date do séc. XVI. O mesmo é dizer: tenha sido trazida nesses primeiros tempos, mostrando como os primeiros habitantes destas terras viviam a fé.

Mas, em Outubro - de 8 para 9 de Outubro - de 1803 uma aluvião (talvez a maior de que temos relatos) matou aqui nesta terra cerca de 15 dos seus habitantes, arrastando e destruindo muitos edifícios. Entre eles estava a Capela do Senhor dos Milagres e todo o seu conteúdo. Da Capela restou apenas o arco ogival da porta e as cruzes do frontespício. O crucifixo foi arrastado para o mar. Três dias depois da aluvião, a 11 de outubro, a imagem de Cristo foi encontrada, no mar, flutuando por cima das ondas, por uma galera americana que passava. Contaram depois os navegadores que, embora quisessem levar consigo a imagem, uma inexplicável força impedia o barco de prosseguir viagem, trazendo-o sempre de volta para a Ilha. Por isso mesmo, o capitão americano entregou a imagem na Sé do Funchal, onde permaneceu até 1813.

O Senhor dos Milagres quer ficar connosco. Cristo quer ficar connosco. Insiste em estar e viver no meio de nós, povo da Madeira. Ele quer-Se connosco porque também para nós Ele veio ao mundo; porque para nós e por nós Ele se fez homem, encarnando no seio da Virgem Maria. Por nós foi crucificado, morto e sepultado. Por nós ressuscitou ao terceiro dia. Por nós, que hoje aqui estamos,. Foi por nós que Deus enviou ao mundo o Seu Filho Unigénito. Foi por nós, que aqui lhe agradecemos a Sua presença, a sua companhia, as graças que dele recebemos, e Lhe pedimos que continue sempre connosco, com a Sua proteção, e a oferecer-nos a salvação.

Não nos pode ser indiferente esta vontade do Senhor que quer estar connosco. Ter Deus ao nosso lado, em casa, no trabalho, nos divertimentos; perceber que Ele quer partilhar a nossa vida, não nos pode deixar indiferentes. É bem diferente viver sozinhos neste mundo ou ter Deus connosco.

No nosso coração brotam, certamente, sentimentos de gratidão. Tal como brotam igualmente sentimentos de arrependimento por nem sempre lhe darmos espaço, por nem sempre contarmos com Ele. Mas, precisamente, como havemos de corresponder; como há-de cada um de nós corresponder a esse amor divino, a essa vontade persistente em nos salvar?

Não nos pede muito o Senhor. Não nos pede muitas coisas. Não nos pede muitos gestos. Mas pede-nos tudo. Pede a disponibilidade de tudo o que somos. Pede uma entrega total. Pede que nos deixemos transformar pelo seu amor. Porque Deus se entregou, por amor, nas nossas mãos, e partilha a Sua vida connosco, pede-nos apenas que O acolhamos, que Lhe demos lugar na nossa vida, que contemos com Ele e nos deixemos transformar pela sua presença, sempre constante e próxima.

+ Nuno, Bispo do Funchal