Homilia no Patrocínio de Nossa Senhora do Monte
PATROCÍNIO DE NOSSA SENHORA
Catedral do Funchal
9 de outubro de 2019
Desde os primeiros dias em que os navegadores portugueses chegaram à nossa Ilha, ela apareceu como uma terra paradisíaca. Contudo, a beleza natural que ainda hoje podemos admirar, como que contrastou, também desde o início, com a dureza da vida daqueles que a habitaram. Obrigado a desbravar o terreno à força de braços para a tornar cultivável; sujeito aos constantes ataques de piratas e corsários, e mesmo a invasões de exércitos estrangeiros, o povo madeirense viu ainda com bastante regularidade, abater-se sobre si pestes e intempéries. A beleza paradisíaca nunca se tornou um inferno, mas não fora a fé que, desde o primeiro instante, desembarcou nestas paragens atlânticas e deu força e esperança ao seu povo, e a vida teria sido bem mais difícil, senão mesmo impossível.
A presença divina, sempre constante, mostrou-se desde os primeiros dias. Deus, com efeito, acompanha o ser humano para onde quer que ele vá; nunca lhe nega a sua assistência, a sua companhia; tal como não lhe nega a possibilidade de dirigir o olhar para mais além, na certeza de que o horizonte do crente não é nunca apenas o aqui e agora onde se desenrola o drama da sua vida, mas aquele que o próprio Deus lhe apresenta e propõe como meta da sua existência. Deus não é prisioneiro de um lugar, ainda que em alguns lugares o ser humano O perceba particularmente presente.
Perante as situações adversas do quotidiano, Deus é Aquele em quem podemos esperar; Aquele que permite ao pobre - que não tem nenhuma outra segurança nem conforto - viver de cabeça erguida; que lhe permite viver as condições amargas com os olhos colocados no horizonte e com a força de quem espera uma vida melhor.
Mas a presença divina que acompanha, protege, ilumina e guia no quotidiano torna-se mais inteligível nos momentos em que tudo - as forças da natureza ou aquelas humanas - se parece conjugar no sentido de uma catástrofe.
Tal como os indivíduos, também as comunidades têm momentos, "situações-limite", em que quase tocam a Deus. Em alguns momentos são ocasiões de alegria, de vitória, conquistas que se realizaram, objectivos que finalmente são atingidos. Noutros momentos, no entanto, essas situações-limite são alturas de catástrofe, de derrota, de sofrimento desmesurado, em que fica patente a miséria ou a incapacidade - o limite das possibilidades humanas. Em todas estas situações-limite os muitos tornam-se um, vivem e reagem a uma só alma e num só coração. Superam-se a si mesmos. Descobrem forças e capacidades únicas. Descobrem a bondade, a solidariedade, a entre-ajuda. E, não raras vezes, descobrem Deus se ainda O não encontraram.
É nestas situações que também fica patente que apenas em Deus, e não nas forças humanas e nos seus saberes, podemos efectivamente esperar. De um modo particular nos momentos de sofrimento e de derrota. Quem, senão Deus, nos poderá valer quando, perante as forças da natureza, nos vemos incapazes de defender a própria vida, e a vida daqueles a quem amamos?
Quando as forças físicas e humanas começam a faltar; quando o saber natural atinge o seu limite e confessa a sua incapacidade, recorremos a Deus, verdadeiro defensor, esperança última do pobre, refúgio derradeiro nas aflições. Foi também assim naquele 9 de outubro de 1803, quando uma aluvião devastou o Funchal, Machico e Santa Cruz. Morreram centenas de madeirenses.
Um relato contemporâneo - a acta da Sessão extraordinária do Cabido da Sé, realizada em 13 de novembro daquele ano - pode dar-nos uma ideia do vivido na noite de 8 para 9 de outubro: "no meio de densíssimas trevas, relâmpagos e trovões, caíram tantas águas, que pareciam ter-se aberto as cataratas do céu, e formando uma grande aluvião desceram aos vales e se precipitaram nas ribeiras, arrastando terras, árvores e pedras de extraordinária grandeza, e tudo quanto encontravam, atacaram esta cidade, lançando por terra pontes, muralhas, casas, igrejas, entre as quais foi a de Santa Maria Maior do Calhau, a mais antiga desta capital, submergindo e afogando muitas famílias inteiras, e deixando outras reduzidas à extrema necessidade e pobreza, e o povo consternado e cheio de medo retirado nos montes" (cit. in Joaquim PLÁCIDO PEREIRA, Nossa Senhora do Monte Padroeira da Ilha da Madeira, 1913, 33-34).
Foi na sequência desta catástrofe que Bispo e Cabido, juntamente com os sobreviventes da catástrofe, decidiram entregar-se nas mãos protectoras de Nossa Senhora do Monte. E de igual modo "se resolveu de unânime acordo celebrar uma festividade muito solene em o dia 9 do mês de outubro de cada ano, em honra do Patrocínio da Virgem Santíssima, Mãe de Deus e dos pecadores, tomando-a por protectora e especial advogada perante Nosso Senhor Jesus Cristo" (ID. 34).
O P. Plácido Pereira, a quem devemos estas transcrições, refere depois o Rescrito Apostólico do Papa Pio VII de 1804 (21 de Julho), que "colocou definitivamente a Ilha da Madeira sob o Patrocínio da Santíssima Virgem Senhora do Monte" (Ibidem).
"Então a Mãe de Jesus disse-lhe: Não têm vinho". A narração do primeiro milagre de Jesus durante a Sua vida pública apresenta a intercessão da Virgem Maria como a palavra que desencadeia aquela manifestação do Senhor, o seu "primeiro sinal". E, diz-nos ainda o evangelista, "Foi assim que, em Caná da Galileia, Jesus deu início aos seus milagres. Manifestou a sua glória e os discípulos acreditaram n'Ele" (Jo 2,11).
Protegidos e acompanhados no quotidiano e nas situações mais difíceis, pessoais e comunitárias, pela intercessão de Nossa Senhora do Monte - que hoje como em Caná da Galileia, continua a dizer a Seu Filho: "olha que eles necessitam de ti" - reconheçamos, também nós, a presença de Jesus ressuscitado, e acreditemos nele, o mesmo é dizer: entreguemo-nos a Ele, cheios de confiança; vivamos com Ele; mostremo-lo a todos em cada momento da nossa vida. A isso nos convida a palavra serena mas cheia de fé da Virgem Santíssima: "Fazei tudo o que Ele disser".
+ Nuno, Bispo do Funchal