Homilia no Dia do Consagrado 2022

02-02-2022

DIA DOS CONSAGRADOS

02 fevereiro 2022

Sé do Funchal


1. A Festa da Apresentação do Senhor que estamos a celebrar, fazendo a transição entre a solenidade do Natal e a celebração da Páscoa, mostra-nos a Jesus que, como Deus, se encontra no Templo de Jerusalém com o resto fiel do seu povo.

No tempo de Jesus, Israel vivia dramaticamente a percepção do abandono de Deus. Os céus como que se tinham calado, fechado. Os profetas tinham desaparecido; a Terra da Promessa estava sob ocupação estrangeira, com um rei colocado no trono pelos romanos e que funcionava como seu delegado.

Mas esta percepção do abandono por parte de Deus era, antes de mais, o fruto do abandono de Deus por parte do seu povo. Com efeito, parece que Deus deixa de estar presente, quando o homem O abandona; parece que Ele deixa de falar, quando o homem deixa de O escutar; parece que Ele deixa de acompanhar a nossa vida, quando ignoramos a vontade divina e não nos colocamos no horizonte da conversão.

Por alturas do nascimento do Senhor, o Templo de Jerusalém continuava exteriormente a funcionar; as cerimónias cultuais continuavam a ter lugar; as inúmeras regras e normas da vida de Israel, não apenas continuavam presentes como eram mesmo aumentadas. E, no entanto, mais que em qualquer outro momento, eram verdadeiras as palavras da Escritura: "Este povo honra-me com os lábios mas o seu coração está longe de mim. É vão o culto que me prestam" (Is 29,13). O povo continuava a dizer-se "povo de Deus". Afirmava mesmo com orgulho: "Nós temos por pai Abraão" (Jo 8,33). Mas o seu coração há muito se tinha afastado do Senhor.

É certo que nem todos partilhavam dessa atitude. Por entre a multidão, havia alguns que continuavam a viver a verdade do povo de Deus. Na narração de S. Lucas que escutámos, eles são corporizados por Maria e José, e também por aqueles dois velhos, Simeão e Ana, que vivem à espera do Messias. São eles que, por isso mesmo e ao contrário de todos os demais, reconhecem e acolhem a Jesus como Salvador. São eles que percebem a presença do Messias. Enquanto os demais parecem viver surdos e cegos, indiferentes aos sinais dos tempos, eles mantiveram o coração acordado na esperança.

Jesus não vem ao Templo apenas para cumprir os preceitos da Lei que obrigavam a que o filho primogénito fosse apresentado ao Senhor e resgatado (Nm 18,15) - no caso dos pobres, por meio da oferta de um par de rolas ou duas pombinhas. Jesus vem ao Templo de Jerusalém porque Ele é o verdadeiro Templo, aquele em quem Deus e o homem se encontram para sempre. Jesus vem ao Templo de Jerusalém porque Ele é o verdadeiro cordeiro, cujo sangue será derramado, instituindo a nova e definitiva Aliança. Em Jesus se reúne, se resume e concentra, se expressa a vida de todos os crentes do mundo inteiro, de todos os tempos. Ele é o verdadeiro vértice da história da salvação. É nele - e apenas nele - que faz pleno sentido que um povo se possa, em verdade, dizer "povo de Deus".

2. Não basta, com efeito, que nos chamemos "Igreja", "povo de Deus". Hoje, como naquele tempo, qualquer agrupamento humano se pode reivindicar de Deus. E, na cultura ocidental contemporânea em que vivemos (quando o homem julga poder criar a realidade pelo simples facto de dizer, de nomear), podemos também nós estar juntos, partilhar ideias e gestos, participar em liturgias cheias de brilho exterior, reunidos por bons e sinceros sentimentos humanos, construtores de realidades magníficas, e julgar que isso é suficiente para nos dizermos "Igreja", "povo de Deus".

Não é assim. O povo de Deus é aquele que é criado por Deus. O povo de Deus nasce da vontade do Senhor - aquela vontade com que Ele deu início ao povo da antiga Aliança, com Abraão; e aquela outra (que é a mesma, só que mais plena) quando, na cruz, fez surgir do seu lado aberto sangue e água, dando, desse modo, surgimento ao povo da nova Aliança, a Igreja.

O povo de Deus é aquele que é conduzido por Deus, pelos pastores que Ele colocou à sua frente. Não é conduzido por aqueles que reivindicam para si essa capacidade. É o povo conduzido por aqueles que o próprio Senhor chama e que Ele mesmo capacita para, mesmo por entre falhas e pecados, serem instrumentos da graça salvadora, da presença do amor gratuito de Deus que efectivamente salva a humanidade de todos os tempos e lugares.

O povo de Deus é aquele que é constantemente moldado por Deus, pela escuta ininterrupta da Sua Palavra. Não nos bastam o conhecimento técnico das fontes e da história da sua interpretação, a capacidade de leitura da Bíblia, ou mesmo a escuta esporádica da Palavra. O povo de Deus recebe constantemente a sua forma, a sua vitalidade, da escuta atenta da vontade divina, dispondo-se a cumpri-la sempre e em toda a parte.

O povo de Deus é aquele que, antes de mais, se confia nas mãos "de Deus". É Deus quem o reúne. É Deus quem lhe dá vida. É Deus quem o alimenta. É Deus quem lhe dá a ousadia e a força para ultrapassar os obstáculos que surgem na sua vida. É Deus que o transforma em constante presença divina, que o mesmo é dizer: em presença do amor divino, isto é, da caridade, porque Deus é amor, caridade. É Deus, a sua presença vivificadora no seio da história e da vida de cada crente, que permite a uma Assembleia convocada em seu nome, caminhar por entre os escombros do mundo até à identificação plena com o próprio Senhor.

O povo de Deus é aquele que é reunido por Cristo com Cristo e em Cristo - corpo de Cristo que caminha pelo mundo, alimentado pela Eucaristia. É a Igreja santa de Deus.

3. Não raras vezes, somos também hoje invadidos pelo sentimento de que Deus abandonou a sua Igreja, abandonou o seu povo, nos abandonou. Seja porque na Igreja vemos tantos sofrimentos e pecados, seja porque o próprio Deus parece sofrer constantes derrotas, no meio de um mundo que se deseja distanciar da própria misericórdia divina.

Mas essa percepção de abandono da Igreja por parte de Deus não será antes fruto da nossa atitude de querermos fazer e pensar tudo (mesmo nós que nos dizemos cristãos) sem Deus e à margem da sua vontade?

Deus jamais abandona o seu povo. O Messias continua hoje a vir ao encontro do seu Templo, ao encontro do seu povo que é a Santa Igreja, ao nosso encontro. Mas encontrar-nos-á a nós dentro da sua Igreja? Ou, como naquele dia da Apresentação do Senhor, encontrará apenas dois velhos, Simeão e Ana, os únicos a esperar a sua vinda e dispostos a acolhê-lo, enquanto os outros viviam distraídos no mundo que tinham criado para si?

4. Celebramos hoje mais um "Dia da vida consagrada". No seio do povo de Deus, como afirma o Concílio Vaticano II, é tarefa dos consagrados serem "um sinal que pode e deve atrair eficazmente todos os membros da Igreja a corresponderem corajosamente às exigências da vida cristã" (LG 44).

Ou seja: aqueles que abraçam a profissão dos conselhos evangélicos numa comunidade religiosa, a eles cabe a tarefa de ajudar todo o povo a ser, verdadeiramente, "de Deus". A ser e a viver como Igreja santa de Deus.

A consagração, a entrega total de um cristão nas mãos de Deus, vivida no seio de uma comunidade religiosa, constitui sempre um acontecimento significativo não somente para o próprio como também para toda a Igreja de Deus. A vida consagrada deve impedir que a Igreja se torne, como gosta o Papa Francisco de dizer, numa "ONG piedosa": realidade apenas humana e com o coração apenas colocado neste nosso mundo e no horizonte desta nossa vida terrena, sem Cristo e sem Deus.

Caminhando sinodalmente com toda a Igreja - quer dizer: integrando-se activamente no peregrinar de toda a Igreja em direcção ao Pai - a vida consagrada tem, no seio deste povo peregrino e no seio da história, a missão de a todos despertar para Deus, para a sua plenitude, para o horizonte da eternidade, para aquelas realidades que constituem a meta do nosso caminhar comum.

Isto vos pedimos, nós os baptizados, a vós, membros das diferentes famílias religiosas que vivem na nossa diocese do Funchal: ajudai-nos, em cada dia, a ser cada vez mais e sempre "de Deus". Ajudai-nos com a vossa vida pessoal e comunitária. Ajudai-nos com o testemunho, também exterior e visível, da vossa consagração, da vossa entrega total ao Senhor. Ajudai-nos mostrando Deus presente, ao nosso lado, a caminhar connosco.

Ao mesmo tempo que, agradecemos a vossa presença, o vosso trabalho, o caminho que connosco realizais, pedimos para vós ao Senhor a fidelidade na vocação que abraçastes, no carisma em que viveis. E pedimo-vos este sinal quotidiano que nos ajude a todos a sermos mais cristãos, mais de Deus, mais Igreja - Templo de Deus a quem o Senhor Jesus Cristo dá constantemente vida e luz.

+ Nuno, Bispo do Funchal