Homilia no Dia da Família 2022
DOMINGO V DO TEMPO PASCAL (C)
Dia das Famílias - Arco da Calheta
15 de Maio de 2022
"Vi um novo Céu e uma nova Terra, porque o primeiro céu e a primeira terra tinham desaparecido e o mar já não existia. Vi também a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do céu, da presença de Deus, bela como noiva adornada para seu esposo" (Ap 21,1-2).
Habitualmente, lemos o Livro do Apocalipse como a descrição de um conjunto de desgraças que acompanham o fim do mundo. Mas essa é uma leitura errada. E é fácil de o perceber: basta ler o livro na sua totalidade, e não apenas pedaços fora do contexto!
O Livro do Apocalipse, escrito por S. João em Éfeso, é antes fruto da visão que foi oferecida ao Apóstolo acerca da realidade final - sobre o fim do caminho, sobre para onde se dirige o mundo inteiro e também todos e cada um de nós. A própria ciência o afirma: o universo encontra-se em expansão e, um certo dia (mais ou menos distante), encontrará o seu fim.
Para onde é que o universo se dirige? Que o mesmo é dizer: para onde nos dirigimos nós (humanidade no seu conjunto e cada um de nós em particular)?
S. João descreve esta nova realidade - a obra prima que Deus quer construir com todos os seres humanos -, descreve-a não a partir de um seu desejo mas a partir do próprio Deus. Como nos é afirmado logo no começo do livro, trata-se de uma "revelação" (é isso que significa a palavra grega "apocalipse") que Deus permitiu ao Apóstolo. Ou seja: Deus deu-lhe a graça de conhecer o final da história, a meta para onde se dirige este nosso mundo e a nossa própria existência. E S. João passou-a a escrito, também por ordem de Deus.
Com que objectivo? Para que os cristãos, que no tempo de S. João viviam perseguições e no meio de sofrimentos, pudessem ganhar ânimo, manter-se firmes na fé e corajosos no testemunho de Jesus - os cristãos daquele tempo e os cristãos de todos os tempos!
E como é esse final? Acabámos de o escutar: "Vi um novo Céu e uma nova Terra, porque o primeiro céu e a primeira terra tinham desaparecido e o mar [símbolo, na Bíblia, de tudo quanto se opõe a Deus e ao ser humano] já não existia. Vi também a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do céu, da presença de Deus, bela como noiva adornada para seu esposo" (Ap 21,1-2).
Quer dizer: trata-se de uma realidade semelhante àquela que vivemos (é um céu e uma terra) mas que é, ao mesmo tempo, uma realidade diferente porque não é uma simples construção humana: é uma construção de Deus em nós e connosco. E, por isso, é uma realidade feliz. Uma verdadeira obra-prima, cheia de beleza - comparável, diz S. João, a uma noiva adornada para o dia do matrimónio! O fim da história, o fim do mundo, S. João compara-o a um banquete de casamento! Deus e a humanidade encontrar-se-ão de um modo perfeito, festivo, feliz!
Assim, surge uma questão: como havemos de apressar esse momento? Que podemos fazer - cada um de nós e todos em conjunto - para ajudarmos Deus na construção dessa nova realidade?
A esta pergunta são-nos oferecidas duas respostas essenciais. A primeira é dada pelo evangelho. É o "mandamento novo" do Senhor: "Que vos ameis uns aos outros, como Eu vos amei" (Jo 13,34).
Que novidade é essa a que Jesus nos convida? Não é o amor uma realidade que, desde sempre, marca o ser humano? A novidade presente no mandamento de Jesus é que não nos basta amar-nos como desde sempre os seres humanos estão habituados a viver e a ser. A novidade é amar como Jesus nos ama! Esse é o ponto alto do amor, o máximo do amor. Por isso, essa é a realidade, a atitude que se tornou a medida do amor - de todo e qualquer amor, de todo e qualquer amor humano.
E onde é que ela se manifestou em máximo grau? Mostrou-se de um modo muito concreto e máximo na cruz de Jesus: amor feito vida, amor levado ao extremo - por isso, amor capaz de transformar a morte em vida. "Amai-vos uns aos outros, diz Jesus, como Eu vos amei na cruz"! Amando-nos desse modo, estamos a construir com Deus o novo Céu e a nova Terra!
A segunda resposta à pergunta sobre como ajudar Deus a instaurar o novo Céu e a nova Terra, encontramo-la na 1ª leitura: Paulo e Barnabé percorrem, sem descanso, o mundo conhecido. Não o fazem pelo fascínio de conhecer novas culturas, ver as maravilhas de outros povos (como acontece com os turistas de hoje). Fazem-no por causa da urgência de anunciar o Evangelho: é urgente dar a conhecer, não apenas o desígnio, a obra-prima final que Deus quer construir connosco, mas há também que implicar todos na sua construção; há que convidar a todos; há que mostrar a urgência e a felicidade de viver como Jesus nos amou, como caminho para o "mundo novo" que esperamos!
A cruz que hoje nos visita, a cruz das Jornadas Mundiais da Juventude, é tudo isto: sinal erguido do amor de Deus, levantado bem alto, para proclamar, à vista de todos, a medida máxima do amor - aquele acontecimento em que Deus mostrou o quanto nos ama a todos e a cada um! É esta cruz que preside, por vontade de S. João Paulo II, a todas as Jornadas Mundiais da Juventude, e que está erguida nos lugares onde elas se celebram, para que todos tomem consciência do amor de Deus por nós. Mas, ao mesmo tempo, o Papa S. João Paulo quis que esta cruz percorresse o mundo inteiro. Quis que fosse a Nova Iorque, ao lugar onde estavam as Torres Gémeas, destruídas por uma acção terrorista em 2001; quis que estivesse na Austrália, na África, na América Latina, na Europa. Quis que visitasse os cristãos de todas as dioceses do mundo.
Também o sacramento do matrimónio coloca o amor de Deus manifestado em Jesus no centro da vida de um homem e uma mulher que já se amam naturalmente. É esta presença de Deus e do seu amor que transforma uma família em manifestação clara do amor de Deus.
De certo modo, aquilo mesmo a que nos chama a cruz das JMJ, é realizado entre nós e sempre por cada família cristã, unida pelo sacramento do matrimónio. Olhando para vós, famílias cristãs que celebrais os 10, 25, 50 e mais anos de matrimónio, vemos de verdade - não apenas hoje mas sempre que vos encontramos - o mandamento novo do amor como convite ao caminho humano. Não sem dificuldades, sofrimentos e pecados. O caminho humano é assim, marcado por tantas dificuldades! Mas é nessa realidade tão humana que surge (tantas vezes por contraste) o amor de Deus.
Olhando para vós, caros irmãos - para as vossas famílias e para o vosso testemunho de vida - entrevemos já o novo Céu e a nova Terra, de que falava S. João. Por isso, damos graças a Deus. E por isso vos agradecemos também a vós, que com a Igreja Diocesana aceitastes celebrar os dons que Deus vos concedeu ao longo da vida.
Acolhamos, todos, o convite, o mandamento: o convite da cruz das Jornadas, e o convite destes casais em festa. Entremos, também nós, neste rio de fé e de vida, que reúne os cristãos de todos os lados do universo, que proclama e constrói o amor, a novidade do amor manifestado na cruz de Jesus - o único que pode, verdadeiramente, construir um mundo novo!
+ Nuno, Bispo do Funchal