Homilia no Corpo de Deus

04-06-2021

SOLENIDADE DO CORPO DE DEUS

Sé do Funchal, 3 de Junho de 2021 (B)


1. O rabbi Abraham J. Heschel, um dos maiores pensadores do século passado, escreveu que "sem maravilhamento ficamos surdos ao sublime" (Dio alla ricerca dell'uomo, 273-274).

Habituados que estamos a esquartejar cientificamente o mundo, a dar por adquirido o funcionamento do quotidiano, vamos perdendo a capacidade de nos espantarmos diante do todo que nos aparece - ficamos surdos e cegos para o sublime que vem ao nosso encontro.

Só o homem é capaz de reconhecer o sublime e de se deixar interpelar por ele. "Sublime" são aqueles acontecimentos que, quando nos deixamos surpreender, nos oferecem o sentido, o significado total da vida, do mundo, do real - e que, por isso, nos interpelam, não tanto na nossa curiosidade mais ou menos científica, mas no todo da nossa existência. Requerem de nós uma resposta, uma tomada de posição, um empenho. Pedem-nos que tomemos uma decisão capaz de abarcar o todo do que somos, a totalidade da nossa história pessoal. Perdidos no quotidiano, incapazes de nos deixarmos surpreender, de nos espantarmos diante do mundo, perdemos também a percepção do sublime que vem até nós.

A solenidade que estamos a celebrar convida-nos, antes de mais, a maravilhar-nos ao nos depararmos com Deus que se curva para vir até nós e partilha connosco a sua vida. Na Eucaristia, Deus inclina-se, humilha-se a si mesmo para poder estar connosco. Curva-se fazendo-se presente no Pão e no Vinho: "Tomai, isto é o meu Corpo [...]. Este é o meu Sangue", como escutámos no evangelho.

E nós não podemos deixar de nos maravilhar com a beleza, com a intensidade, com o sublime do amor divino assim demonstrado. Não podemos deixar de nos surpreender, hoje como se fora a primeira vez, pelo sublime de Deus que vem ao nosso encontro. "O que nos falta não é uma vontade de acreditar mas uma vontade para nos deixarmos maravilhar", dizia também Heschel. Deixemo-nos, pois, maravilhar diante da Eucaristia, e a própria fé se tornará mais forte.

2. Esta grandeza sublime do amor divino que vem ao nosso encontro, alimenta-nos, transforma-nos, converte-nos. De tal modo que devemos dizer que a vida cristã assume o conteúdo e a forma da Eucaristia.

Com efeito, que somos nós, cristãos, a não ser Cristo? Que é que nos distingue; que podemos nós acrescentar ao outros modos de ser e de viver, também eles humanos, senão Cristo? Que temos nós, cristãos, para dar ao mundo a não ser Cristo - Cristo hoje, aqui, a partilhar, a transformar e a dar vida ao mundo contemporâneo, à existência dos homens e mulheres deste nosso tempo, de todos os homens e mulheres deste nosso tempo? Para onde caminhamos e para onde procuramos encaminhar este nosso mundo; qual a meta da nossa existência, a não ser Cristo - aquele de quem estamos revestidos desde o momento do nosso baptismo; o homem verdadeiro (que sintetiza plenamente o que é ser homem, e onde o humano atingiu o seu ponto mais excelente, mais alto) - o homem verdadeiro e, simultaneamente, o Deus verdadeiro?

Mas não apenas o conteúdo da existência cristã, também a sua forma - o modo do nosso viver, do nosso olhar, do nosso falar, do nosso existir - a forma da vida cristã é Cristo tal como Ele se nos oferece na Eucaristia.

Importa pois que nos perguntemos: em que se concretiza esta forma da Eucaristia? A forma da Eucaristia é aquela que nos é dada pelo acolhimento, pela gratidão, pelo serviço e pela esperança.

Pelo acolhimento. Diante de Deus, descobrimo-nos pobres: famintos, sedentos, necessitados. Não podemos, por isso, deixar de estar atentos ao que nos rodeia. Não podemos deixar de estar atentos a quanto pode saciar a nossa fome, a nossa sede.

Olhamos o que está à nossa volta, não como juízes que, de um pedestal, cheio de soberba, julgam e condenam, mas como pobres que procuram o mais pequeno sinal, o mais pequeno dom, o mais breve instante em que Deus passa e sacie a nossa sede e a nossa fome. Olhamos a realidade à nossa volta, atentos a quanto nos pode falar, mostrar Deus: da natureza ao outro nosso irmão (quem quer que ele seja) e à história que vivemos.

Somos de tal modo pobres que nos deixamos moldar pelo modo como Ele se mostrou, se revelou - que o mesmo é dizer, pela cruz: completamente disponíveis para a vontade do Pai e de braços abertos para todos. Pedimos que, em nós, Deus realize a sua vontade: "Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito". A forma da Eucaristia é uma atitude permanente de acolhimento de Deus e do próximo.

A forma da Eucaristia é-nos também dada pela gratidão. O mundo contemporâneo está cheio de si mesmo, das suas conquistas e capacidades. Tem dificuldade em sentir-se grato. Cada um procura colocar-se num pedestal mais alto que aquele que está a seu lado. Preocupa-se em mostrar que aquilo que conseguiu foi devido às suas próprias capacidades, e que nada deve, nem aos demais nem a Deus. Julgamos que a gratidão nos limita, nos torna menores.

A Eucaristia, ao contrário, faz-nos perceber que todos somos devedores: devedores de Deus e uns dos outros. E que, tendo sido cumulados de bens, muito mais que quanto merecíamos, não podemos deixar de agradecer e de viver na gratidão.

Longe de nos limitar, de nos tornar menores; longe de nos impedir o desenvolvimento e a expressão do que somos, a gratidão eucarística ajuda-nos a encontrar o nosso lugar, a verdade plena de cada um, e a não nos contentarmos com quanto já conseguimos.

Aquele que se alimenta das modas e dos valores do mundo tem a forma do mundo. Aquele que se alimenta da Eucaristia assume a forma de Deus. E esse modo de ser e de viver a partir de Deus torna-nos imensamente felizes. Vivendo em Deus e com Ele, somos imensamente mais. Por isso, estamos gratos. A Eucaristia dá-nos a forma da gratidão permanente.

A forma da Eucaristia é-nos também dada pelo serviço. A Eucaristia faz-nos cuidar uns dos outros, faz-nos lavar os pés uns aos outros. Faz-nos ser responsáveis por este mundo. Faz-nos responsáveis, sem voltar a cara às lutas e canseiras para tornar este mundo mais humano e mais divino: isso significa o cuidado daqueles rostos concretos que vêm até nós, em particular dos pobres, e onde Deus se revela.

A Eucaristia faz-nos gente de comunhão, de comunidade. Responsáveis pelos amigos, pela família, pela nossa comunidade humana e cristã, pela nossa pátria. Mas também responsáveis pelos inimigos e pelos desconhecidos, quer vivam ao nosso lado, quer habitem em terras distantes. Faz-nos responsáveis pela inteira humanidade e pelo seu destino. A Eucaristia é uma verdadeira escola de serviço. A forma da Eucaristia é a atitude permanente de serviço até ao fim.

Finalmente, a forma da Eucaristia é ainda dada pela esperança. Estando na terra, vivendo a condição de exilados e peregrinos, fracos, limitados e pecadores, é-nos dado saborear o Céu - o "pão dos anjos" (como lhe chamam tantos místicos cristãos), verdadeiro alimento de vida eterna.

Vivemos com o Céu dentro de nós. Por isso, não desesperamos diante das dificuldades (nem sequer do martírio). Ultrapassamo-las porque percebemos que a última e definitiva palavra não será nunca pronunciada por um homem ou por qualquer força da natureza, mas por Deus - Aquele Deus que se faz nosso alimento, companheiro de jornada, energia que vence as nossas fraquezas.

3. O programa do presente ano pastoral está centrado no sacramento da Eucaristia. Em particular, previa a realização de um Congresso das Confrarias do Santíssimo, presentes em praticamente todas as nossas paróquias. São associações de fiéis que, em primeiro lugar, têm por objectivo a entre-ajuda dos cristãos na promoção e na vivência do culto eucarístico.

Não foi possível a realização daquele Congresso mas, nesta celebração, estão representantes das várias Confrarias do Santíssimo. Precisamos de as reavivar, de lhes proporcionar mais dimensão e força espiritual, como condição para reanimar a vida cristã nestas nossas "Ilhas do Santíssimo Sacramento".

Deixemo-nos todos, irmãos, maravilhar por esta presença divina no meio de nós que é a Eucaristia. É o conteúdo da nossa vida cristã. É a forma da nossa vida cristã: feita de acolhimento da vontade de Deus e de acolhimento do próximo; feita de gratidão, de acção de graças; feita de serviço e feita de esperança segura.

Deus connosco e em nós, a transparecer, a aparecer na nossa vida. Beleza divina que nos transforma e atrai. Realidade sublime presente na nossa vida!

+ Nuno, Bispo do Funchal