Homilia no 1 de abril - Aniversário do falecimento do Beato Carlos D'Áustria

02-04-2023

101º ANIVERSÁRIO DO FALECIMENTO DO BEATO CARLOS

Igreja de Nossa Senhora do Monte

1 de abril de 2023


A dimensão da luta está sempre presente em S. Paulo. O Apóstolo bem sabia — e não raras vezes o recordava — como outrora tinha perseguido a Igreja (julgando com isso cumprir a vontade de Deus), e como tinha sido derrotado pelo Ressuscitado no Caminho de Damasco (cf. Gal 1,13-16). Bem sabia ainda S. Paulo o quanto tinha que lutar para afirmar a verdade do Evangelho, a verdade da graça como uma realidade salvadora, frente aos que insistiam na necessidade de cumprir os preceitos da Lei de Moisés (Gal 2,1-10). Bem sabia também como tinha que lutar consigo mesmo, frente ao homem velho que sempre insistia em reaparecer (2Cor 12,7). Bem sabia o Apóstolo como tinha que corrigir as comunidades e os cristãos para que não se desviassem do Evangelho de Cristo (1Cor 15,1-2). E bem sabia como tinha de lutar, de trabalhar na obra da evangelização, frente ao mundo pagão, cheio de deuses, repleto dos seus ídolos e da soberba da sua razão (1Cor 1,22-24), aprisionando o homem num olhar quase completamente vergado sobre si. Bem sabia quanto era difícil o embate com a cultura grega e romana do mundo mediterrâneo de então.

Já então, eram, de verdade, dois mundos que se enfrentavam: o mundo daqueles que achavam ser suficiente a pequena felicidade do momento (a que Paulo chamava "carne" — quer dizer: aquela realidade passageira, frágil e mortal que caracteriza o ser humano) e aquele outro mundo que se tinha deixado surpreender por Cristo e pelo horizonte infinito de eternidade que a vida em Cristo traz consigo (e a que Paulo chamava o mundo "do Espírito" — nunca sinónimo dum conceito "espiritualista" de quem desconhece ou despreza o concreto da vida e a sua realidade, mas significando a vida nova com que o Espírito de Deus anima o mundo real).

A luta caracteriza, portanto, desde sempre, o cristianismo. M. Unamuno, num seu célebre opúsculo, não hesita em falar da "agonia do cristianismo", neste sentido de luta permanente. Diz ele: "Qualquer cristão deve, para mostrar o seu cristianismo, a sua agonia pelo cristianismo, dizer de si mesmo Ecce christianus, da mesma forma que Pilatos disse: «Eis o homem»" (Agonia, 18). E ainda: "O cristianismo, ou melhor ainda a cristandade, […] não foi uma doutrina, embora se exprimisse dialecticamente; foi vida, foi luta, foi agonia" (34).

Uma luta constante de construção dum mundo novo, que surge, que irrompe como fruto da novidade de Deus, transformando, revigorando, desfazendo o mundo velho que, orgulhoso, se quer babelicamente construir a si mesmo sem Deus, senão mesmo contra Ele.

Uma luta constante de construção do homem: de reconstrução da sua humanidade perdida; de abertura dos seus horizontes fechados pelo pecado; de divinização das suas opções, das suas atitudes, de todo o seu ser.

Uma luta constante de reconstrução do ser com o outro, tornado próximo porque nos aproximamos dele, e nele reconhecemos a presença do único Deus que nunca hesita em partilhar a condição dos mais fracos, dos mais pobres, dos mais sós.

Por isso, também uma luta constante de construção da paz, realizada e vivida com as armas da paz. Mas uma luta. E assim foi o cristianismo ao longo dos séculos, mesmo que não raras vezes os cristãos se tenham afastado, divergindo do caminho proposto e percorrendo caminhos que hoje percebemos serem errados.

A civilização ocidental, que traz consigo a marca do Evangelho, pode bem resumir o seu drama (a sua história dos últimos dois mil anos) nesta luta transformadora em que Deus procura o Homem, e em que este, consciente de ter morto o seu irmão, se esconde, volta as costas ao Criador, procura outros caminhos, e se encerra na solidão de quem perdeu o horizonte e a companhia paterna e fraterna.

2. Nisto se pode também resumir o drama de há cem anos, que trouxe a esta Ilha, como exilado, o último imperador cristão — ele que, com todas as suas forças e por todos os meios razoáveis ao seu alcance, tinha procurado construir a paz na Europa, terminando uma guerra fratricida e sem sentido. Fê-lo, mesmo a custo da sua popularidade. Fê-lo, mesmo contra o parecer dos seus generais. Fê-lo, permitindo a opinião de ser um fraco líder político e militar. Fê-lo arriscando perder a guerra, mas com o objectivo de poupar vidas humanas.

Nesse seu empenho de construir a paz, o Bem-aventurado Carlos encontrou obstáculos vindos de toda a parte — do seu governo e dos seus aliados, bem como das potências suas inimigas. Para todos eles, a Guerra tinha que ser vencida a qualquer preço; o inimigo tinha que ser derrotado, porque aquilo que estava em jogo não eram a justiça nem as vidas humanas, mas um modelo de sociedade que era necessário impor aos povos europeus. E isso, apenas a vitória o poderia permitir. Assim, a paz não era bem-vinda.

"Não entendo como é que as mães estão contentes ao verem os filhos partir para a Guerra", confidenciou o Bem-aventurado Carlos â sua esposa, depois de assistir à partida de um grupo de soldados para a frente de combate. Mas esse era o clima generalizado na Europa de então: a propaganda tinha convencido os europeus de que era importante fazer a guerra. Em consequência, uma geração europeia foi completamente dizimada, seja por ter sido morta, seja por ter sido irremediavelmente traumatizada.

Em 1918, derrotado militarmente, duas opções foram colocadas perante o jovem imperador: o abandono do juramento que fizera a Deus e ao seu povo, com a garantia de um futuro materialmente abundante e despreocupado; ou o exílio numa terra distante, na pobreza e longe dos seus. Também aqui a luta interior de Carlos terá sido intensa e, como sempre, partilhada com a esposa, a Imperatriz Zita. Mas, também aqui, a aparente derrota que o trouxe à nossa Ilha se tornou em vitória — vitória de Deus; vitória que hoje aqui nos reúne e que faz desta igreja de Nossa Senhora do Monte um lugar de peregrinação de tantos fiéis que vêm visitar o Santo Imperador, pedindo a sua intercessão e a força para seguir o seu exemplo. Tal como a cruz de Jesus, o que foi derrota aos olhos humanos tornou-se em vitória porque tinha o selo de Deus.

3. "Não entendo": esta mesma expressão podemos nós usar perante a guerra que continua a grassar na Ucrânia: guerra que ninguém quer parar; conflito que todos se aplicam a ganhar, mesmo sabendo que, numa guerra, todos perdem!

"Não entendo": a guerra é sempre irracional e irrazoável; é sempre desumana e injusta. O Papa Francisco, por cuja saúde constantemente oramos, disse recentemente nunca ter pensado ser "um Papa em tempo de guerra", e pedia há dias, como presente para o 10º aniversário da sua eleição: "A paz; quero a paz como presente".

Peçamos também nós a Deus, por intercessão do Bem-aventurado Carlos, a graça da paz para o nosso mundo e para cada um de nós. Peçamos ainda a graça de sabermos lutar com as armas de Deus contra todos os inimigos que nos procuram desviar da fé. E peçamos, finalmente, a graça da fidelidade: neste nosso mundo que facilmente se esquece de Deus, da dignidade humana e do valor da vida quando se encontra perante os pequenos benefícios temporais, peçamos a graça da fidelidade ao que somos, aos dons que Deus nos concede e às missões de que Ele nos incumbe em favor deste nosso mundo.

+ Nuno, Bispo do Funchal