Homilia nas Ordenações Sacerdotais 2019

27-07-2019

ORDENAÇÕES PRESBITERAIS

Funchal, 27 de Julho de 2019

"Tal como o Pai me amou, também Eu vos amei: permanecei no meu amor"

1. Aos Doze, presentes na Última Ceia, o Senhor Jesus deixa, por três vezes, o mandamento do amor - do amor como Ele amou. Em que consiste o amor? Longe de ser um sentimento humano, frágil e transitório (como tudo o que é humano), o amor surge, nestes versículos do capítulo 15 do evangelho de S. João (com razão, classificados como "a cantata do amor divino")[1], o amor surge como o vínculo inquebrantável e total que, desde a eternidade, une o Pai ao Filho, e que o Filho, por sua vez, acolhe e transmite aos seus: "tal como o Pai me amou, também eu vos amei". O amor é a vida, é a vontade, o querer divino presente na relação trinitária. É dele que brota toda a realidade. É a sua constante oferta, desde a eternidade, que qualifica a Pessoa do Pai. E é o seu acolhimento, desde a eternidade, que qualifica a Pessoa do Filho (é o que o faz ser Filho). O amor é o dinamismo da vida de Deus (cf. 1Jo 4,16): vida oferecida em plenitude e perfeitamente acolhida, correspondida.

A grandeza da vida cristã, a sua identidade e dignidade, a sua ousadia, brotam, precisamente, do facto de Jesus nos amar tal como o Pai o ama - e, assim, em Cristo, nos podermos chamar e sermos de verdade filhos de Deus (1Jo 3,1). O amor do Pai é-nos agora oferecido a nós que, criaturas e pecadores, estávamos longe de poder viver desse modo: por isso, reconhecemos que é ousadia chamar a Deus por Pai. Ousamo-lo, no entanto, mas apenas porque "tal como o Pai me amou, também eu vos amei". E deste amor que recebemos e aprendemos - realidade única, não merecida e completamente cheia de graça - dele surge a continuidade do mandamento de Jesus: "permanecei no meu amor".

Permanecer no amor é agora em nós um querer que só é possível por ser sustentado pelo excesso do amor divino. Um querer que se expressa na fé, na esperança e na caridade - por isso mesmo chamadas virtudes teologais (quer dizer: vida humana habitual, nascida e garantida pela acção divina, e finalizada à nossa união de vida com Deus). Podemos amar como Jesus e permanecer nesse amor porque, em primeiro lugar, somos amados e, desse modo, aprendemos a amar: "Permanecei no meu amor". Amar é acolher e permanecer no amor divino.

Permanecer no amor, diz-nos também Jesus, é guardar os mandamentos. Que mandamentos? Certamente: o decálogo, os 10 mandamentos de Moisés, relidos e vividos pela plenitude de Jesus Cristo (Mt 5,18). Mas, mais que isso, "guardar os mandamentos" é o todo da vida cristã, porque a vida cristã é obediência, acolhimento de Deus em nós, recepção de vida em abundância que, por nós, nunca seríamos capazes de gerar. Guardar os mandamentos é ter a atitude de filho; é deixar-nos formar, conformar, pelo amor de Deus em nós, pelo amor do Pai com que Jesus nos ama. Só assim - apenas se for Ele a amar em nós - podemos amar como Ele nos amou. E nisso, nessa obediência, consiste, diz Jesus, a alegria. E nela consiste também o "amor maior", quer dizer, aquele amor que é próprio de Deus: "não há amor maior do que dar a vida pelos amigos".

"Dar a vida": eis o que é próprio de Deus. Dar a vida na ordem da criação e naquela da redenção. Se parece claro o que significa "dar a vida" na ordem da criação - significa fazer constantemente surgir do nada e manter na existência tudo quanto tem ser -, não é tão claro para nós o que significa "dar a vida" na ordem da redenção.

Como é que Jesus deu a vida pelos amigos, quer dizer: como é que Ele deu a vida por nós e por todos? Sabemos que o realizou na cruz: "sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim" (Jo 13,1). E, por isso, ao morrer na cruz, Jesus exclama (sempre segundo S. João): "tudo está finalizado", tudo está completado, tudo está consumado. É o amor levado até ao fim, até ao último momento, mas - sobretudo - o amor vivido no seu grau mais elevado. Aí, nesse momento, ao contemplar Deus que, por nós, morre na cruz, sabemos de verdade e objectivamente o que é o amor.

Sabemos o que é viver como Filho: dependente do amor do Pai, obedecer-Lhe, acolher a Sua vontade sempre, até ao fim. Mas sabemos igualmente até onde chega a identificação do Verbo com a carne, o mesmo é dizer: com a nossa fragilidade, com o nosso pecado. E sabemos como a sua vida, o seu respirar, o Seu Espírito é, na ressurreição, entregue aos discípulos (Jo 20,22).

"Dar a vida" na ordem da redenção (depois que, na história, aquele amor primeiro da criação foi recusado e transviado; depois que o homem escolheu viver como pecador), dar a vida significa, na vida de Jesus redentor, esquecer-se de si para obedecer radicalmente ao Pai até ao fim, significa querer que a sua vontade se identifique plenamente com a do Pai. Mas dar a vida na ordem da redenção significa também encarnar, identificar-se com os homens até viver o drama da morte como eles, com eles e por eles. "Deus demonstra assim o seu amor para connosco: quando éramos ainda pecadores, foi então que Cristo morreu por nós" - afirma o Apóstolo Paulo (Rom 5,8). A morte e o pecado deixaram de ter a última palavra. Deixaram de ser o fim. Agora podemos dizer, compreender e viver que o verdadeiro fim do mundo, a sua verdadeira consumação, a meta para onde se dirige toda a história é o amor, a vida de Deus.

Aqueles que acolhem desta maneira o amor ("tal como o Pai me amou, também Eu vos amei: permanecei no meu amor"), esses são os "amigos" do Senhor - aqueles com quem Ele se identifica, aqueles que perdem a vida para que em cada momento da sua existência brilhe, apareça a vida de Deus. Por isso o Senhor Jesus diz: "Já não vos chamo servos mas amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi de meu Pai".

2. "Não fostes vós que me escolhestes; fui Eu que vos escolhi e destinei, para que vades e deis fruto, e o vosso fruto permaneça" (Jo 15,16). Aos que com Ele tinham partilhado a Última Ceia - a quem o Senhor tinha lavado os pés -, aos Doze, o Senhor Jesus impede qualquer tentativa de reivindicar para si o sucesso da vida nova que o Mistério Pascal faz surgir. Nem sequer a glória do primeiro passo, a glória da iniciativa, a glória de uma escolha do Mestre, como então acontecia com os discípulos dos rabis.

"Fui Eu que vos escolhi": o Senhor assume a iniciativa, como assume igualmente o risco, a responsabilidade da escolha. Ele conhece aqueles que tem diante: conhece o seu coração e a sua inteligência; as suas qualidades e defeitos; a sua coragem e o seu medo. Mas recusa que as capacidades dos discípulos sejam elas a dar substância ou, sequer, a dar forma à actividade apostólica. É o amor recebido do Pai - e só ele - a oferecer a substância e a forma do agir apostólico. E apenas desse modo a missão tem garantia de fruto - do fruto que o Senhor quer, do fruto que permanece.

Caros ainda diáconos Marco e André,

hoje, nesta catedral, o Senhor Jesus entrega-vos o seu testamento, como fez naquela noite de Quinta-feira Santa aos que com Ele tinham participado da Última Ceia e recebido o ministério apostólico. A Sua Palavra - a Palavra que nos vem de Deus, a Palavra que é Deus - ultrapassa as barreiras do espaço e do tempo para se tornar acontecimento hoje, aqui, nas vossas vidas, nas nossas vidas.

É uma escolha de Jesus - sua iniciativa e responsabilidade. Hoje, aqui, desaparece qualquer glória vossa. A iniciativa é de Jesus, e apenas ela há-de prevalecer: iniciativa que é missão irrecusável, tarefa a realizar, imperativo a viver.

Pelo baptismo, já conheceis a vida nova, o amor que é vida divina a jorrar do Pai para o Filho e para os filhos que em Jesus se tornam amigos de Deus: "como o Pai me amou, também Eu vos amei". Mas hoje o Senhor confia-vos, faz-vos participantes do seu único sacerdócio. Ele torna-vos Sua presença, aqueles por meio de quem o amor divino se torna visível, actuante, graça a jorrar para a Igreja e o mundo. Aqueles para quem os cristãos e o mundo devem poder olhar e descobrir o amor do Pai presente, acessível, próximo de todos.

Sem o sacerdócio de Jesus, poderia a Igreja julgar que tem, por si mesma, a capacidade de criar o amor - nesse preciso momento teria deixado de ser a Igreja de Jesus! - poderia reduzir Jesus a um mero ponto de referência histórica, ponto de partida de uma ideologia modificável segundo os gostos, as modas, as apetências humanas; transformável de acordo com a subjectividade de cada um. Assim o exige de Jesus o mundo (desde sempre, mas, sobretudo, o mundo contemporâneo)!

Ao sacerdócio ministerial cabe hoje (como em qualquer outra época da história), antes de mais, a tarefa de recusar a separação entre a Igreja e Jesus Cristo. "Tal como o Pai me amou, também Eu vos amei. Permanecei no meu amor": ao sacerdócio ministerial cabe a tarefa de recordar, de ser presença viva e exigente desta centralidade do amor do Pai.

Habituámo-nos a chamar o que está à nossa volta pelos nomes que mais gostamos, pensando que, desse modo, com os nossos poderes humanos, damos início a uma nova realidade, a um mundo novo. Nada mais ilusório. E, assim, chamámos "amor" a um sentimento humano transitório, frágil, criado à nossa imagem e semelhança. E, desse modo, julgámos poder fugir à dureza - à cruz! - que o amor de Deus sempre traz consigo. Esquecemos que, desse modo, voltámos as costas também à ressurreição, à alegria.

Mas um Padre é a presença do amor - daquele "amor maior", do amor crucificado, único a poder dar a vida: "assim como o Pai me amou, também Eu vos amei: permanecei no meu amor". Ao mundo inteiro, e em particular àqueles que nos estão confiados, às nossas comunidades, cabe-nos a tarefa de recordar (pela nossa vida e pelas nossas palavras) que o amor verdadeiro e maior não o podemos nós criar ou inventar: é antes vida recebida do Pai, dom imerecido, que apenas podemos agradecer ("eucaristiar") e, com a força da graça divina, procurar corresponder.

"Como o Pai me amou, também Eu vos amei: permanecei no meu amor". A alegria de escutar hoje estas palavras como dirigidas de um modo particular a vós, queridos ordinandos, amigos de Deus (mas são-nos dirigidas também a nós, a todos!) transformar-se-á, em vós, na vossa vida, dentro de momentos, em missão, tarefa e serviço irrecusáveis (sem vos retirar nunca a alegria - pelo contrário!). O Senhor passará por vós. Irá entregar-vos o seu amor como missão: acolhei-O. Com a Sua graça, procurai corresponder-lhe e torná-lo presente ao longo de toda a vossa vida, para o bem da Igreja, para a salvação do mundo.

Convosco alegra-se hoje toda a Igreja. Em vós vemos hoje claramente como o amor de Deus não é imaginação nem sonho. É vida concreta, sacramento, homens transformados em sua presença para sempre!

+ Nuno, Bispo do Funchal


[1] Cf. X. LÉON-DUFOUR, Lectura del evangelio de Juan, III, Salamanca, 1995, 145.