Homilia na Solenidade da Imaculada Conceição

10-12-2022

IMACULADA CONCEIÇÃO

Sé do Funchal

08.dezembro.2022


1. "Avé, ó Cheia de Graça, o Senhor está contigo": é deste modo que o Anjo, ao saudar a Virgem como enviado da parte de Deus, reconhece e proclama a condição Imaculada de Maria, desde o momento em que foi concebida. Assim o entenderam também a esmagadora maioria dos teólogos, dos pastores, e de todos os crentes ao longo destes dois mil anos de cristianismo.

A nós, que hoje vivemos a fé apostólica - a fé como no-la deixaram os Apóstolos e nos foi transmitida e entregue (e não queremos outra) -, a nós cabe-nos viver no seio dessa enorme torrente de fé que reconhece à Virgem de Nazaré o seu lugar único no plano de Deus para este nosso mundo e, ao mesmo tempo, como Maria, acolher o Filho do Altíssimo, gerado também em nós pelo Espírito Santo.

Mas a conceição imaculada de Maria - a proclamação de que Nossa Senhora foi sempre "Cheia de Graça", a proclamação de que ela não cometeu qualquer pecado e que foi isenta do próprio pecado original (aquele pecado cuja presença todos experimentamos diariamente como inclinação para praticar o mal) - aquela proclamação não passaria de uma ideia, (por muito piedosa que fosse), se não trouxesse consigo um sinal claro, fora do comum, único, que marcasse a própria carne maternal de Maria de Nazaré. Esse sinal foi-nos dado pelo próprio Deus: é a virgindade física de Nossa Senhora, antes, durante e depois do parto, como ensinam vários Concílios Ecuménicos. Maria é, na carne, portadora de um sinal da sua total consagração a Deus, do seu acolhimento pleno da Palavra divina.

Certamente: a tomada de consciência do que significava esta condição viriginal de Maria - que os textos do Novo Testamento proclamam expressamente - trouxe consigo um novo de entender a virgindade consagrada. Com efeito, nas culturas de então, a virgindade era recusada porque significava a incapacidade de gerar filhos. A partir de Jesus e de sua Mãe, a consagração virginal por amor do Reino dos Céus (cf. Mt 19,2) passou, ao contrário, a ser sinal de que nem tudo o que é humano se resume à família e ao gerar dos filhos ou aos outros bens deste mundo. Passou a ser presença da meta para onde todos caminhamos, "onde nem eles se casam, nem elas são dadas em casamento" (Mt 22,30). E passou também a ser expressão maior de liberdade humana.

Não se trata, como é óbvio, de desmerecer a maternidade. Trata-se de alguém procurar corresponder ao plano divino para a sua história pessoal. Quer dizer: de corresponder à vocação que Deus nos faz ao criar-nos, ao dar-nos vida. E, desse modo, trata-se de entender também a maternidade e paternidade como um acto de liberdade, consciente, de correspondência ao chamamento divino. Como nos recorda o Papa Francisco, precisamos de aprender a olhar para o matrimónio e para a família também como verdadeira vocação.

Devemos pois dizer que Maria de Nazaré experimentou sempre a virgindade consagrada como fruto do apelo divino. Experimentou-a espiritualmente e experimentou-a fisicamente: virgem no acolhimento espiritual da Palavra de Deus; virgem antes, durante e depois do parto como expressão física daquela consagração, porque o ser humano, criado por Deus, é assim que vive: "espírito na carne".

2. Mas regressemos a esse privilégio único que constitui a Imaculada Conceição de Nossa Senhora, para que o seu louvor a Deus seja também nosso. Com efeito, a Imaculada Conceição de Maria, a sua isenção de todo o pecado, mesmo do pecado original, não constitui uma arbitrariedade divina que, desse modo se teria divertido a dar sinais de omnipotência. Sabemos que Deus não actua desse modo. Os milagres que faz, não os realiza nunca dum modo arbitrário, mas (mesmo aqueles realizados em favor de uma pessoa) tendo sempre em vista o bem, a salvação de todos.

Assim também com Maria. A sua condição singular, imaculada, é como que "requerida" pelo nascimento de Deus em carne humana. Deus, ao conceber a Virgem Maria, ao pensá-la, "Antes que do nada nascessem os mundos", tendo em vista a encarnação de Seu Filho (o Verbo feito carne, como diz S. João), e a nossa redenção, sonhou Aquela de quem Cristo havia de tomar carne humana como toda pura, santa, imaculada.

Procuremos compreender: como poderia Aquele que não tem pecado nascer de uma pecadora? Se Jesus veio para nos salvar desse mesmo pecado, como poderia Ele fazer sua a carne do pecado? Jesus haveria de assumir verdadeira carne humana, é certo, mas carne imaculada, sem sinal algum de pecado. Jesus haveria de assumir todas as consequências do pecado; haveria de sofrer a morte de cruz por causa do pecado de todos. Mas nunca poderia ter derrotado o inimigo, a morte, sem viver numa condição de "não-pecado". Di-lo claramente S. Paulo na 2ª Carta aos Coríntios: "Aquele [Jesus] que não conheceu pecado, [Deus] o fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus" (2Cor 5,21).

A liberdade humana toca aqui o seu ponto mais alto. A humanidade encontra aqui os seus exemplares maiores, inultrapassáveis! O facto de Maria, Virgem Imaculada, ter correspondido plenamente à graça divina, mostra-nos como é possível não pecar: acolhendo a vontade de Deus e com a Sua graça, podemos construir uma humanidade livre das correntes do mal, uma humanidade nova, um mundo verdadeiramente novo!

Com as palavras de S. Cirilo de Alexandria, ao inaugurar o Concílio de Éfeso (431), louvemos também nós a Imaculada Conceição e, nela, toda a obra de salvação que encontra em Maria de Nazaré a sua síntese e a sua expressão maior:

"Nós vos louvamos, ó Maria, Mãe de Deus, Tesouro digno de veneração que pertence ao mundo inteiro. Lâmpada cuja luz não se extingue. Nós vos louvamos, Coroa de virgindade; Ceptro da verdadeira doutrina; Templo indestrutível; Lugar daquele que nenhum lugar pode conter; Virgem e Mãe, graças a vós foi possível que Jesus recebesse nos Evangelhos o nome 'daquele que vem em nome do Senhor'. Trouxestes no vosso Seio Virginal, o incompreensível e o imenso. Graças a Vós, a Santíssima Trindade recebe a glória e a adoração; graças a Vós exulta o Céu; os Anjos rejubilam de alegria; e os demónios são postos em fuga".

+ Nuno, Bispo do Funchal