Homilia na Solenidade da Dedicação da Sé do Funchal

18-10-2020

SOLENIDADE DA DEDICAÇÃO DA CATEDRAL

Funchal, 18 de Outubro de 2020


1. À medida que foi crescendo em humanidade, o ser humano construiu para si mesmo lugares para habitar, casas, em cujo interior pudesse ser ele próprio e de onde se pudesse expressar, mostrar ao mundo.

Se, por um lado, a casa (particularmente no exterior) foi adquirindo as características da cultura envolvente - consoante o clima, as actividades e os próprios valores sociais -, por outro lado, sobretudo no interior, foi sendo humanizada consoante os gostos dos seus habitantes. Quer dizer: foi recebendo aquelas peculiaridades que fazem com que aquele determinado espaço seja a casa, o lar para alguém e para a sua família.

Nós, seres humanos, precisamos de viver o espaço, de o humanizar, de o moldar (até como expressão da nossa interioridade), de lhe conferir o que nos distingue e torna únicos.

Ao contrário, Deus não precisa de lugares. Ou melhor: todos os lugares são Sua presença, pois tudo foi por Ele criado. Como afirma a Escritura, "dele é a terra e tudo o que ela contém, o mundo e quantos nele habitam" (Sl 24,1). Ou, perante a intenção de David de construir um Templo, o próprio Deus afirma: "em nenhuma casa habitei desde o dia em que fiz subir do Egito os israelitas, até ao dia de hoje" (1Sam 7,6). Já no Novo Testamento, S. Paulo, dirigindo-se aos habitantes de Atenas, anuncia: "O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe, o Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos por mãos humanas" (Act 17,24). E o próprio Jesus, ao falar com a Samaritana, não hesita em dizer: "Vem a hora - e é agora - em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade" (Jo 4,23). Deus não precisa de um lugar para se encontrar com o homem: todos os lugares são esse lugar de encontro.

E, no entanto, o dinamismo da encarnação - por muito que relativize o tempo e o espaço (como diz o Concílio Vaticano II, "na sua encarnação, o Verbo de Deus uniu-se de certo modo a cada homem" - GS 22) - não deixa de assumir o concreto de um tempo e de um espaço: o nascimento do Salvador teve lugar "quando Quirino era governador da Síria", no reinado de César Augusto (cf. Lc 2,1-2) e num determinado lugar, em Belém de Judá. E, versículos antes, o evangelista tinha dito que "o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia chamada Nazaré" (Lc 1,26).

2. Não espanta pois que, logo no início do cristianismo, encontremos conjugados estes três factores: a necessidade de humanizar os lugares como dado natural do homem; a transcendência de Deus que se encontra para além dos templos; e a realidade da encarnação, em que Deus se limita a si mesmo, fazendo-se homem, vivendo num tempo e num lugar.

Encontramo-los conjugados já nos escritos neotestamentários quando, por exemplo, S. Lucas afirma que os discípulos celebravam a Eucaristia ("partiam o pão") em suas casas (cf. Act 2,46), ou quando S. Paulo pede que seja saudada a "Igreja que se reúne em casa de" Priscila e Áquila (Rom 16,5): a comunidade reunia-se nas casas dos cristãos, e aí celebrava a Eucaristia.

As investigações arqueológicas têm mostrado como, mesmo no caso das reuniões nas casas familiares, os lugares onde era celebrada a Eucaristia foram sendo resguardados e dedicados a essa celebração. É a natural conformação do espaço, que vai acontecendo aos poucos (desde o início do séc. II até ao séc. IV), transformando a casa onde a Igreja celebra na "casa da Igreja" (Domus ecclesiae).

A transformação foi de tal modo que, a dado momento, vemos surgir, nos períodos de relativa liberdade, mesmo na cidade de Roma, edifícios construídos de raiz mas exclusivamente dedicados à celebração da Eucaristia e à catequese. Exteriormente são casas como as demais; no entanto, interiormente os seus espaços adquirem não apenas uma funcionalidade específica (a celebração) como também um valor sagrado: é aí que a Igreja se reúne para escutar a Palavra e celebrar a Eucaristia.

A liberdade dos cristãos, que o início do séc. IV consagrou, trouxe consigo a possibilidade e a necessidade de novos e maiores espaços, à medida que a própria cidade se ia convertendo dos deuses pagãos ao louvor do Deus único e verdadeiro revelado em Jesus.

Para os construir, os cristãos não foram inspirar-se nos templos pagãos já existentes: o cristianismo é uma religião, mas é radicalmente diferente de quanto existia no mundo grego ou romano. Por isso mesmo, os cristãos assumiram o modelo da "basílica", o espaço coberto onde se realizavam as grandes assembleias da cidade, onde os cidadãos se encontravam e se aplicava a justiça, num sinal claro seja de ruptura com o conceito pagão de divindade, seja de presença e abertura a toda a cidade.

A casa da Igreja não necessitava já de ser uma no meio de tantas. Podia agora distinguir-se, mostrar-se, erguer-se e convidar a quantos quisessem para entrar, converter-se, fazer parte da comunidade.

No interior - mostram-no tantas basílicas paleo-cristãs - o programa arquitectónico e decorativo, sobretudo com os mosaicos, convidavam ao recolhimento e a que o crente se deixasse envolver pela história da salvação. Mais que dos usos e costumes próprios, da cultura daqueles que ali celebravam a Eucaristia, as igrejas procuravam mostrar Aquele que verdadeiramente as habitava, Jesus ressuscitado: na carne das suas paredes procuravam mostrar o Verbo que, presente na história da salvação, tinha falado aos nossos pais pelos profetas, se tinha feito homem no seio da Virgem Maria, tinha sido morto e tinha ressuscitado ao terceiro dia. O mesmo é dizer: as paredes das igrejas procuravam mostrar como o dinamismo da encarnação continuava a marcar a existência dos cristãos em cada momento da história.

3. Olhando para esta nossa Catedral, cuja dedicação, ocorrida há 503 anos, hoje celebramos, que nos diz ela acerca de Jesus Cristo, Aquele que verdadeiramente a habita? A que nos convida ela?

A Sé do Funchal é, antes de mais, uma igreja com a forma de um corpo humano crucificado - cabeça, braços abertos e tronco, pernas e pés -, porque, precisamente, nela habita o Deus feito Homem, Aquele que se fez em tudo semelhante a nós excepto no pecado (cf. Heb 2,17; 4,15), e por nós morreu e ressuscitou. Assim, esta catedral, convida-nos a nós, comunidade cristã que aqui se reúne, a tomarmos consciência do que somos: o corpo de Cristo ressuscitado, o modo como Ele se apresenta hoje ao mundo.

O transepto, quais braços abertos, como os braços abertos de Cristo na cruz, mostram-nos o acolhimento que Jesus sempre nos faz - a nós, pecadores que confiamos na Sua misericórdia. E quando entramos na sua nave (semelhante ao tronco de Cristo na cruz) desde logo somos convidados a dirigir o nosso olhar para a cabeça deste corpo, que o mesmo é dizer: para Cristo, Deus feito Homem, morto na cruz para nos salvar, presente na Eucaristia, convidando-nos a unir-nos a Ele.

Com efeito, no presbitério podemos contemplar o retábulo que, das cenas eucarísticas em baixo nos convida a elevar o espírito, primeiro para o mistério da encarnação do Verbo na Virgem Maria e, depois, para o mistério pascal da Paixão, Morte e Ressurreição do Senhor - a Eucaristia que todos os dias aqui celebramos é a vivência que hoje fazemos destes mistérios centrais da vida: Deus que se faz homem para que, por meio da Sua Páscoa, cada um de nós e todos como comunidade possamos viver a vida de ressuscitados.

Mas sempre acompanhados e rodeados pelas primeiras testemunhas da fé, os Apóstolos e os Profetas, figurados nos cadeirais que envolvem o retábulo.

No centro da Catedral, no lugar dos pulmões e do coração, encontramos o ambão e o altar - a mesa da Palavra e a mesa da Eucaristia, onde, durante a sua peregrinação na história, é alimentado o povo da Nova Aliança.

As naves desta Catedral, altas e erguidas ao céu, convidam-nos, também a erguermos os olhos ao Pai, a receber a Sua luz: a deixar que essa luz ponha a claro não apenas o nosso pecado, dando-nos a consciência do que realmente somos, como, sobretudo, mostrando-nos a graça divina que nos conduz e transforma, transfigura. E os tectos da Sé, construídos com motivos orientais, fazem-nos tomar consciência de como Jesus quer ser conhecido de todos os povos do ocidente e do oriente e, desse modo, a tomarmos consciência da nossa vocação universal, católica e missionária.

Tudo isto rodeados pelos santos, em comunhão de vida com eles, acolhendo o seu testemunho - o mesmo é dizer: chamados, também nós, a progredir quotidianamente na santidade.

À entrada, a fonte do baptismo, o lugar onde os homens nascem para a vida de ressuscitados, que é a vida eterna. E a porta, grande, aberta, a chamar constantemente para o encontro com o Senhor.

Somos a Igreja de Cristo, o novo Templo do Senhor, construído de pedras vivas - Igreja diocesana que vive nesta nossa terra, e aqui torna presente a Jesus Cristo, O mostra vivo e acolhedor, transformador da vida, do quotidiano de todos os nossos irmãos (de quantos nesta Ilha habitam e de quantos a procuram, vindos de fora, para alguns dias de descanso ou lazer).

Que o Senhor nos dê a graça de nos deixarmos configurar à sua imagem, assumindo na vida os apelos que esta nossa Catedral constantemente nos faz, para O mostrarmos vivo, ressuscitado, salvador, presente na vida de todos.

+ Nuno, Bispo do Funchal