Homilia na Quarta-feira de Cinzas

26-02-2020

QUARTA-FEIRA DE CINZAS

Sé do Funchal, 26 de fevereiro 2020

"Reconciliai-vos com Deus" (2Cor 5,20)

Na IIª leitura que acabámos de escutar, S. Paulo urgia aos cristãos de Corinto: "Reconciliai-vos com Deus".

Muitas e grandes eram as divisões entre aquela comunidade cristã; e muitos e grandes eram também os problemas na sua convivência com o resto da população da cidade. No entanto, o Apóstolo como que tudo resume neste convite: "Reconciliai-vos com Deus"! É que, de facto, a reconciliação com Deus é o primeiro passo para nos reconciliarmos com todos. Ao contrário, como o mostra o livro do Génesis desde o início (e como mostra a realidade humana que experimentamos quotidianamente), quando estamos mal com Deus tudo se desmorona: a nossa relação connosco mesmos, com os outros, com a natureza.

Que significa pois este pedido do Apóstolo que acabámos de escutar como dirigido a cada um de nós? Que significa este "reconciliai-vos com Deus"?

As palavras do Apóstolo que escutámos como IIª Leitura (o final do capítulo 5º e o início do capítulo 6º da 2ª Carta aos Coríntios) são antecedidas daquelas outras em que S. Paulo exclamava, maravilhado: "Se alguém está em Cristo, é uma nova criatura. Passaram todas as coisas antigas; eis que tudo se fez novo". E acrescentava ainda: "Tudo isto vem de Deus, que nos reconciliou consigo por Cristo e nos confiou o ministério da reconciliação" (2Cor 5,17-18).

Assim, podemos afirmar: a reconciliação é um dom e iniciativa divina, acolhida por nós; a reconciliação de Deus conosco é realizada por meio de Cristo; a reconciliação consiste numa "nova realidade": a realidade da vida daquele que é baptizado, daquele que está em Cristo.

1. Antes de mais, a reconciliação é dom e iniciativa de Deus, acolhida e vivida por cada um de nós. Mesmo criando-nos, Deus poderia ter-nos deixado à nossa sorte. Poderia ter-nos abandonado. Se assim fosse, nunca teríamos notícia da Sua existência, não saberíamos em que consiste o amor, nem saberíamos em que consiste a vida. Seríamos como vegetais. Ou como os animais, que se movimentam reagindo a estímulos.

Mas não foi assim que Deus nos quis, a nós, seres humanos. E também não nos quis como uma amálgama, um conjunto de seres uniformes, anónimos e sem personalidade, uma massa - ainda que, porventura esta, consciente de si mesma. Não: a nós, seres humanos, Deus quer-nos a cada um. Conhece-nos a cada um de nós. Somos queridos como únicos, porque todo o amor do Pai é dado a cada um. E Ele quer-nos para Si. E quer-se connosco. Em cada um de nós, no nosso coração, Ele gravou a nostalgia da eternidade, quer dizer: a nostalgia da vida, a nostalgia de Deus.

E nós apenas podemos maravilhar-nos com a arquitectura deste projecto divino de salvação - dirigido a todo um povo, é certo, mas não menos dirigido a cada um de nós.

Por tua causa, ainda que apenas tu existisses em toda a terra, Deus teria tomado a iniciativa de se mostrar, de procurar fazer caminho no teu coração, de dobrar o teu coração egoísta e empedernido. Por tua causa e em ti, Ele oferece na cruz todo o Seu amor, toda a Sua vida.

Sim: a história da salvação abarca tantos para além de nós; abarca todo um povo que vive na história. Mas não duvides: fosses apenas tu, e Cristo teria igualmente morrido na cruz para te salvar. Por isso, tu, quem quer que sejas, não és dispensável neste oceano da salvação, nem lhe és indiferente.

Poderás sempre recusar a iniciativa divina, o amor único com que Deus te ama - mas sabe que, ao fazê-lo, não és indiferente ao Seu amor de Pai. Bem pelo contrário: "Eu vos digo que [...] há mais alegria no céu por um só pecador que se arrepende, do que por 99 justos que não precisam de arrependimento" (Lc 15,7).

2. O dom de Deus tem um nome. Chama-se Jesus de Nazaré. Ele é o protótipo de toda a história. Em Jesus se resume toda a criação, e nele se resume toda a salvação. Nele se resume, aliás, toda a história. Ele é o alfa e o ómega - havemos de o proclamar solenemente na noite santa de Páscoa.

Que poderias tu fazer ou ser - tu, que nasceste completamente no pecado (cf. Jo 9,34) -, como poderias tu, apenas pelas tuas próprias forças, libertares-te dessa rede que escraviza, que te faz ser menos, que te leva a conformares-te com o pouco, com o nada, e que se chama "pecado"? Como poderias tu, apenas por ti mesmo e apenas com as tuas forças, tornar-te na imagem, na presença daquele rosto do homem salvo, "o mais belo dos filhos dos homens" (Sl 45,2), o homem novo?

Precisamos de Alguém que nos salve; precisamos de um Deus que nos salve. "Apenas um Deus nos poderá salvar" - dizia um filósofo do século passado (Heidegger). E este Deus que nos salva tem um nome que atravessa toda a história: Jesus Cristo. Só nele existe a salvação, porque Ele é o Deus que se faz homem para salvar.

Deixa que, no teu coração, Cristo grave o Seu nome (o nome de "cristão"), e que faça resplandecer no teu rosto a glória do Pai. Deixa que em ti, na tua vida concreta, Jesus exerça o seu ministério de reconciliação - deixa que Ele transforme a tua vida à sua imagem, transforme a tua história, o teu olhar, as atitudes do teu coração. Só Ele o pode realizar. Deixa-te salvar sempre por Jesus Cristo!

3. Aquele que está em Cristo é uma nova criatura; tudo se fez novo! Não é sonho, nem imaginação, nem criação humana: como poderia alguém criar aquilo "que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração do homem não percebeu - tudo quanto Deus preparou para aqueles que O amam"? Mas, como logo diz o Apóstolo: "A nós, porém, Deus o revelou pelo Espírito" (1Cor 2,9-10).

Essa realidade nova é a vida surgida em nós das águas do baptismo. No momento do baptismo, com Cristo, descemos às águas e fomos sepultados, para com Ele ressurgirmos, ressuscitarmos. E a partir desse momento, tudo em nós também se fez novo, à imagem de Cristo, o Homem novo. E tudo podemos olhar com os olhos do Ressuscitado.

Reconciliados com Deus: esta é a condição com que saímos das águas do baptismo. Esta é a condição do Cristão.

E, com os olhos de Cristo ressuscitado que então recebemos, podemos olhar de modo diferente a natureza que nos rodeia. Porque, como diz S. Paulo aos Colossenses: em Cristo, "Deus quis reconciliar consigo [...] todos os seres, da terra e dos céus, realizando a paz pelo sangue da sua cruz" (Col 1,20).

Com os olhos de Cristo ressuscitado que recebemos no baptismo, olhamos de modo diferente os homens nossos irmãos. Porque, como diz S. Paulo aos Efésios: Cristo "é a nossa paz: de ambos os povos fez um só, tendo derrubado o muro de separação e suprimido em sua carne a inimizade" (Ef 2,14).

Tu, que és baptizado, passaste a viver dessa realidade última, definitiva que o Apóstolo S. João tão bem expressava: "jamais haverá morte, nem luto, nem clamor; e nem dor haverá mais. Sim, as coisas antigas passaram!" (Ap 21,4). No baptismo, o definitivo de Deus faz-se presente. É vida nova! É a vida nova que em ti se quer fazer realidade, vida para todos!

O convite da Quaresma é, portanto, aquele que os Padres da Igreja (e mesmo alguns autores não cristãos) insistentemente fazem aos fiéis: "cristão, torna-te o que és"! És baptizado: procura viver como tal. Estás reconciliado com Deus: vive como filho de Deus; procura ser sempre presença de Cristo. Estás reconciliado com toda a criação: respeita e defende tudo quanto foi colocado à tua disposição para viveres.

Deixemo-nos reconciliar com Deus! Nesta Quaresma, vivamos séria e entusiasmadamente "o Dia da salvação", a que o Apóstolo S Paulo nos convidava já no final da leitura que escutámos: "Porque Ele diz: 'No tempo favorável, Eu te ouvi; no dia da salvação vim em teu auxílio. Este é o tempo favorável. Este é o dia da salvação!"

+ Nuno, Bispo do Funchal