Homilia na Ordenação Diaconal 2021

18-12-2021

ORDENAÇÃO DE DIÁCONO

Sé do Funchal, 18 de dezembro de 2021

(Sábado da III Semana do Advento)


Leituras:

Jer 23,5-8

Sl 71

2Cor 4,1-2.5-7

Mt 1,18-25


1. "Já não se dirá: 'Vive o Senhor que fez sair Israel da terra do Egipto!', mas antes: 'Vive o Senhor, que fez sair e regressar os descendentes da casa de Israel!".

Olhando o horizonte da história com as vistas largas próprias dos profetas, Jeremias é uma voz que brada no deserto dos corações. Não escutado, rejeitado e mesmo condenado, o profeta vive o drama de colocar a verdade de Deus diante do seu povo, e de mostrar como a recusa da vontade divina traz consigo consequências devastadoras.

Contudo, se o drama de Jeremias é ter que anunciar tantas vezes a destruição (cf. Jer 20,8: "Sempre que falo, tenho de gritar e clamar: Violência e destruição!"), o profeta não deixa também de proclamar a salvação: é certo que a recusa de Deus traz a ruína; mas o próprio Deus não deixará de fazer surgir acontecimentos de salvação. Porque Deus permanece o Criador do universo e o Senhor da história. Por isso, não deixará de, no presente, realizar gestos salvadores, ainda mais maravilhosos que os dos tempos passados. Se outrora Deus fizera sair o seu povo do Egipto, "com mão forte e braço poderoso", também no tempo do profeta fará regressar os exilados de Israel.

Para nós, seres humanos, cada momento da história é único e irrepetível. Não o poderemos nunca voltar a viver. E aquilo que vivemos, jamais poderemos apagar. Mas, como recordava Santo Agostinho, Deus é o eterno presente. Por isso, em particular através da liturgia, Ele faz-nos presentes aos dinamismos dos grandes momentos da salvação.

O hoje da liturgia é, portanto, o hoje eterno de Deus que fecunda o hoje passageiro do homem. É o hoje da salvação, que envolve e dá sentido ao transitório e frágil da história. E se Jeremias anuncia o regresso dos exilados como um momento de salvação maior que a libertação do Egipto, nós devemos dizer e proclamar que o mistério pascal de Cristo - por antonomásia, "o acontecimento da salvação", em que a morte é definitivamente vencida e ao ser humano é oferecida para sempre a vida divina - é o grande acontecimento que nunca nos cansaremos de viver e reviver. É o centro da história!

Tomemos consciência disto, nós que nos preparamos para celebrar a Eucaristia e para viver a ordenação de um Diácono. O que vai acontecer diante dos nossos olhos não são meros ritos simbólicos, cerimónias humanas, ainda que com uma referência a Deus. O que o Senhor nos permite e convida a viver é o hoje da salvação - hoje que faz coincidir, que resume e que assume as grandes etapas da história da salvação no mistério pascal de Cristo. É o hoje de Deus no seio do tempo (do nosso tempo), o hoje do Deus connosco, o hoje da eternidade na história. Por isso celebramos. Celebramos o hoje da salvação.

Mais. No caso do sacramento da Ordem, é o próprio ordinando que é transformado, para sempre, em sacramento vivo; em presença constante do mistério do Deus connosco. Nele, de verdade, Cristo, por meio dum homem frágil e pecador, passa a estender as suas mãos ao homem do nosso tempo.

2. No caso dos Diáconos, diz-nos o Concílio Vaticano II (LG 29), são-lhes impostas as mãos não para o sacerdócio mas para o ministério, para o serviço. Precisamente a esse serviço - a essa "diaconia", se traduzirmos à letra o original grego! - se referia de um modo particular o Apóstolo S. Paulo na IIª Leitura de hoje.

Acerca da diaconia, S. Paulo começava por afirmar que a tinha recebido como dom da "misericórdia de Deus". Quer dizer: a diaconia é uma incumbência que Deus, no seu amor misericordioso, entregou ao Apóstolo. Não é uma conquista, uma vontade, uma iniciativa do homem. É um dom de Deus: imerecido, superabundante, e que empenha todas as forças de Paulo.

Ao dizê-lo, o Apóstolo recordava a sua vocação, o encontro com o Ressuscitado no caminho de Damasco, aquele momento concreto da sua vida em que foi chamado por Jesus, e a sua vida se viu radicalmente transformada. E referia-se também à confiança com que o próprio Senhor lhe tinha entregue o Evangelho. A diaconia de Paulo era, portanto, fruto da imensidão desmesurada do amor de Deus, manifestada naquele que antes tinha sido perseguidor, mas a quem o Senhor ressuscitado tinha feito misericórdia.

Paulo confessava como, por causa disso, se viu na contingência de colocar de lado o acanhamento e a dissimulação. O acanhamento, fruto do próprio modo de ser; a dissimulação, fruto do receio sobre os efeitos que a mensagem do Evangelho possa causar nos outros. O acanhamento, algo de espontâneo que urge ultrapassar; a dissimulação, fruto da pressão que o mundo faz para que aquele que anuncia o Evangelho se cale, torne mais brandas as suas palavras e o anúncio se conforme cada vez mais com o sentir do homem velho, até perder definitivamente o seu vigor.

Para que pudesse exercer com fidelidade a sua diaconia, Paulo viu-se, portanto, chamado a nada colocar de seu no anúncio do Evangelho - nem sequer as suas incapacidades (o acanhamento e a dissimulação)! Só desse modo poderia (nele, nas suas palavras e acções) aparecer claramente o rosto de Cristo.

É nesse "rosto de Cristo" que brilha e se reflete a glória de Deus. Deus torna-se visível aos homens; o seu esplendor pode ser contemplado por nós, no rosto de Cristo. É esse rosto de Cristo - e apenas ele - que Paulo deve anunciar, tendo o cuidado de em nada o diminuir (por causa das suas incapacidades), e de nada lhe acrescentar (por aquilo que poderia ser o fruto de uma mera sabedoria humana). Podemos pois dizer que, para S. Paulo, a diaconia consiste no anúncio pleno e puro de Cristo, em cujo rosto brilha e nos é dado a conhecer a glória de Deus: anúncio do Evangelho feito em toda a sua inteireza e com toda a ousadia.

Esse é o tesouro que Paulo traz consigo em vaso de barro. Em muitas passagens das suas cartas, o Apóstolo faz referência à sua fragilidade. Aqui chama-lhe "barro", fazendo alusão ao pó da terra com que Deus moldou Adão, à fragilidade que marca o ser humano desde sempre. Contudo, é este barro que, inexplicavelmente, contém, transporta e mostra o tesouro precioso do Evangelho. Como na carne frágil do Menino do Presépio se mostrou a esplendorosa glória de Deus, assim na carne daquele que é ordenado há-de refulgir o Evangelho de Cristo com todo o seu poder salvador!

3. Também a Leitura do Evangelho nos falava da fraqueza humana, da graça divina que tudo supera e do desígnio de salvação em Cristo que Deus tem para a humanidade. Com efeito, S. José é muitas vezes apresentado (sobretudo na tradição dos ícones orientais) como aquele que foi tentado muitas e muitas vezes: como seria, afinal, possível Deus fazer-se Homem, em sua casa, no seio da sua esposa?

Percebendo, no entanto, que a vocação era divina, José não hesitou: "Quando despertou do sono, José fez como o Anjo do Senhor lhe ordenara, e recebeu sua esposa". O dinamismo da graça divina que nos vem ao encontro, nos surpreende e nos converte; a graça que resplandece na fragilidade da carne humana - que é o dinamismo da encarnação que nos preparamos para celebrar em mais um Natal - distingue o cristianismo entre todas as demais realidades humanas e religiosas.

Distingue-nos também a nós. Importa, caro José Patrício, que distinga sempre a tua vida de cristão e o ministério que agora, como a Paulo na estrada de Damasco, a misericórdia de Deus te confia. Exerce-o sem acanhamento ou dissimulação. Deixa que em toda a tua vida - mesmo (e sobretudo) na fraqueza, no pecado, se manifeste a glória divina. Sê para todos a presença do hoje da salvação, a presença da Páscoa de Cristo.

+ Nuno, Bispo do Funchal