Homilia na Missa da Ceia do Senhor 2022

14-04-2022

QUINTA-FEIRA SANTA (Missa da Ceia do Senhor)

Sé do Funchal,

14 de Abril de 2022


A comunidade nova alimenta-se da Eucaristia

1. A novidade da nova Aliança é Jesus Cristo. Não é uma novidade como aquelas a que estamos habituados.

Tomamos habitualmente a palavra "novidade" como sinónimo de notícia de que alguém realizou uma acção velha e conhecida. Quer dizer: tomamos "novidade" não pelo seu conteúdo mas pelo seu protagonista.

A guerra, por exemplo, não é uma novidade: a novidade é que a velha guerra, que desde sempre a humanidade conhece, está agora em terras da Ucrânia. E poderíamos continuar... aquela pessoa cometeu um roubo; aquela outra assassinou; alguém disse uma mentira... E o mesmo poderíamos dizer das realidades boas e positivas que conhecemos, e que "não fazem notícia" na comunicação social.

Ao contrário, em Jesus. Verdadeiramente nele existe a novidade. Não é simplesmente um novo actor para uma realidade velha. Ele é a novidade!

Em Jesus, existe uma realidade de facto nova: existe a novidade da vida de Deus, e a possibilidade de a ela verdadeiramente acedermos, coisa impensável à nossa razão humana. Existe a novidade de uma nova atitude do ser humano diante de Deus, e a possibilidade que Ele nos oferece de partilhar dessa novidade. Existe a novidade de olhar o outro de um modo novo, com um novo olhar (o olhar de Jesus, o Bom Samaritano que, esquecendo-se de si mesmo, se entrega completamente ao serviço do próximo, amando-o até ao fim, morrendo por todos), e a possibilidade de partilharmos dessa novidade ("Se não te lavar os pés, não terás parte comigo", escutou Pedro a Jesus), deixando que Deus vá, aos poucos, tornando a nossa liberdade mais dócil à sua vontade, ao seu projecto para todos e ao seu projecto para cada um de nós.

2. Mas, com Jesus, com o seu Mistério Pascal de morte e ressurreição - cuja celebração anual agora iniciamos -, com Jesus, nasce também um novo povo, uma nova comunidade: a Igreja.

Não se trata de uma comunidade construída a partir dos interesses dos seus membros (como sucede no caso de uma associação, de uma comunidade política, ou de uma comunidade familiar).

A nova comunidade, a Igreja, não surge da partilha de interesses religiosos por parte dos seus membros; não surge a partir da possibilidade de entre-ajuda, da partilha de sentimentos religiosos; ou da partilha de um ideal para o mundo: tudo isso existe na Igreja, mas não constitui a fonte da sua vida, a sua razão de ser.

A Igreja surge porque Jesus a quis. Porque o Senhor lhe deu origem; porque a amou como se fosse a sua esposa; porque nos deu, pelo baptismo, a possibilidade de partilharmos a sua vida. É assim que o novo povo de Deus tem a sua existência, e essa é a sua identidade mais profunda, que nunca poderemos esquecer, sob pena de, como gosta de recordar o Papa Francisco, a Igreja se tornar numa ONG, igual a tantas que procuram fazer o bem, um pouco por todo o mundo.

Já o povo da Antiga Aliança tinha nascido por iniciativa de Deus. Tinha nascido da fé de Abraão, da ceia pascal partilhada na noite da libertação do Egipto (como escutámos na Iª Leitura), da Aliança do Sinai, e da promessa de uma Terra e de um Messias esperado: era o "povo de Deus", que o próprio Senhor criara e conduzia ao longo do tempo antigo, antes de Cristo.

Mas o novo povo de Deus, que é a Igreja, nasce constantemente - a cada momento - da Páscoa de Jesus, celebrada e vivida em cada Eucaristia.

Por isso, para este novo povo, Jesus não é apenas "alguém inspirador" que, tendo vivido há dois mil anos, a todos tenha deixado um ideal de humanidade que, depois, cada crente se esforçaria por pôr em prática, e para o qual gostaríamos de mobilizar cada vez mais pessoas - isso não seria nada de novo, e seria bem pouco: a história está cheia desses nomes, importantes e inspiradores, mas que não são capazes de salvar!

A Igreja nasce constantemente de Jesus (o Salvador) porque Ele é Alguém vivo que constantemente nos alimenta, não com o alimento de realidades terceiras (materiais ou espirituais que sejam), mas que nos alimenta com o seu próprio Corpo e Sangue, de tal forma que, assim alimentados, nos vamos transformando nele.

Jesus é o Salvador porque só Ele nos oferece a possibilidade de vivermos a sua vida, a vida de Deus, uma vez que Ele viveu a nossa vida humana "até ao fim", connosco. É por isso que, para ser ela própria, a Igreja necessita de se alimentar constantemente da Eucaristia.

Por isso também, a celebração da Eucaristia não consiste apenas num encontro ritual em que reforçamos os nossos laços de amizade e entre-ajuda - ou sequer os laços da fé -, como sucede num qualquer banquete de família ou de antigos alunos duma escola. Na Eucaristia, alimentamo-nos de Jesus: "Isto é o Meu Corpo entregue por vós... Este é o cálice da nova Aliança no Meu Sangue", como acabamos de escutar. O pão da Última Ceia, que Jesus partiu antecipando a sua morte e ressurreição, e que, depois, distribuiu por todos, para que todos comungassem do mesmo pão - esse pão, ainda que na sua aparência exterior continue a ser o mesmo, tornou-se na realidade o Corpo do Senhor, como nos recordava S. Paulo na IIª Leitura.

E a taça, a mesma taça de onde todos beberam (ao contrário do que era habitual na Ceia Pascal judaica, em que cada comensal tinha a sua taça), tornou-se, na realidade, a taça da nova Aliança no Sangue de Jesus.

3. A Igreja na sua unidade ("Creio na Igreja una", professamos no Credo) - a realidade que surge e é cimentada por este singular comer e beber (por esta "comunhão") - a Igreja é pois a realidade do Corpo de Cristo, como afirma S. Paulo em tantos passos das suas cartas.

É este Corpo que assume e que une como seus membros a quantos partilham do mesmo pão e bebem do mesmo cálice: comungando do mesmo Pão e bebendo do mesmo Cálice, somos membros de Cristo e, assim, membros uns dos outros, nova comunidade, Igreja de Deus, presença de Jesus! Por isso, somos também todos co-responsáveis pela vida da Igreja, cada um segundo a sua missão. Quer dizer: responsáveis pela vida do próprio corpo. Somos Igreja porque, comungando do mesmo Corpo de Cristo, somos o único Corpo de Cristo. E, sendo membros do Corpo de Cristo, somos membros uns dos outros.

A "sinodalidade" a que o Papa Francisco nos chama de modo particular neste ano, e para a qual quis despertar os cristãos do mundo inteiro, se é certo que tem a sua raiz no baptismo (o sacramento que nos faz membros do Corpo de Cristo), tem na realidade eucarística o seu alimento indispensável. Nenhum cristão se pode, portanto, demitir da vida da Igreja; nenhum cristão pode abandonar a Eucaristia: seria abandonar o Corpo de Cristo, seria abandonar a novidade da salvação.

Ao iniciarmos a nossa Páscoa anual com esta celebração que nos torna presentes à Última Ceia do Senhor, peçamos-lhe que nos faça mais seus. Que nos dê a graça de, em cada dia, nos irmos tornando mais disponíveis para vivermos a sua vida. Que nos torne mais co-responsáveis da vida uns dos outros; mais comunidade. Deixemos que Ele nos alimente na Eucaristia. Peçamos-lhe para sermos em cada dia, mais presença do seu Corpo, Igreja de Deus, povo da nova Aliança.

+ Nuno, Bispo do Funchal