Homilia na Missa Crismal 2022
QUINTA FEIRA SANTA
MISSA CRISMAL
14 abril 2022
1. "Povo de Reis, Assembleia Santa, Povo Sacerdotal". O cântico com que iniciámos esta nossa celebração, oferece-nos o espírito com que somos convidados a vivê-la. Retirado da Primeira Carta de S. Pedro (1Ped 2,9-10), mostra-nos Jesus como o Cristo, o Ungido do Pai; e mostra-nos como, dessa sua unção, Ele faz participantes todos os baptizados, congregando-os na sua Igreja santa - aquela comunidade a que Ele dá origem e que Ele reúne de todos os confins da Terra.
Nessa mesma linha, escutámos também a IIª Leitura, retirada do Apocalipse de S. João: "Àquele que nos ama e pelo seu sangue nos libertou do pecado e fez de nós um reino de sacerdotes para Deus, seu Pai, a Ele a glória e o poder, pelos séculos dos séculos" (Ap 1,6).
Jesus Cristo salvador não dá origem a "indivíduos salvos" sem qualquer relação entre si, mas a um povo, o povo da Nova Aliança, que Ele santificou na sua Páscoa - o seu corpo, dirá S. Paulo em várias das suas cartas - para, ao longo dos séculos e em todas as culturas espalhadas pela terra, Ele poder estar presente, a oferecer a todos "o caminho, a verdade e a vida". Nem indivíduos, nem massa, mas pessoas salvas, reunidos em Igreja, povo da nova Aliança.
"Aprouve a Deus salvar e santificar os homens, não individualmente, excluída qualquer ligação entre eles, mas constituindo-os em povo que O conhecesse na verdade e O servisse santamente" (Constituição Lumen gentium, 9). Hoje, 57 anos depois da sua aprovação, esta afirmação do Concílio Vaticano II continua cheia de consequências. Não é apenas uma verificação, mas constitui um apelo, uma tarefa, uma missão. A Igreja, com efeito, em todas e em qualquer das suas dimensões, não é uma realidade secundária, opcional, por relação ao centro do mistério da salvação. A Igreja não é uma realidade que possa ser dispensada ou substituída por um qualquer grupo humano, por um qualquer círculo de reflexão e de acção, uma associação criada por gente inteligente, eficaz e pura.
Não. Somos hoje, em 2022 - nós, que aqui nos reunimos na celebração que prepara de modo próximo as celebrações pascais - como aquela primeira comunidade de discípulos: pecadores, ignorantes, incapazes, necessitados de constante conversão e purificação. Somos a Igreja de Deus que caminha, com as suas incapacidades e por entre as críticas do mundo, ao encontro do Senhor. Somos a Igreja, consciente do seu pecado e das suas limitações, mas com a ousadia de afirmar aquela realidade que nos ultrapassa infinitamente: a vida de Deus oferecida aos homens no mistério pascal de Jesus.
Somos hoje esta Igreja, a comunidade dos resgatados que, apesar disso e contraditoriamente, caem no pecado, mas da qual Deus se serve para Se mostrar, para estar presente, aqui na nossa terra. Aliás, só assim fica claro que a salvação vem de Deus e não de nós (como o reconhecia o Apóstolo Paulo: "De boa vontade, me hei-de gloriar nas minhas fraquezas, para que habite em mim o poder de Cristo" - 2Cor 12,9). Igreja constituída por pecadores, mas por meio da qual resplandece a santidade divina.
Jesus Cristo poderia, certamente, ter salvo a humanidade de outro modo. Mas foi assim, em Igreja, que o quis e quer fazer: é assim, que nesta nossa Ilha, o quer fazer ainda hoje.
2. Não o faz, contudo, de modo a que a Igreja se julgue capaz de construir a salvação da humanidade por si mesma, com as suas capacidades, com os seus saberes. Apenas Jesus Cristo é o Salvador. Apenas Ele pode dizer com toda a propriedade: "Cumpriu-se hoje mesmo esta passagem da Escritura que acabais de escutar" (Lc 4,21).
Isso significa que, em cada tempo e lugar, a comunidade dos fiéis, a Igreja, não pode deixar de se reportar, de conferir os seus gestos, as suas atitudes, as suas palavras, o seu modo de ser e de viver com os gestos, as atitudes, as palavras e o modo de ser e de viver do próprio Jesus.
Pode e deve fazê-lo porque tem à sua disposição os escritos inspirados que constituem a Sagrada Escritura e que nos oferecem o próprio Jesus, tal como eles são lidos e transmitidos pela vida da Igreja ao longo dos séculos - quer dizer: pela Sagrada Tradição. Isso no-lo recorda o Concílio Vaticano II na Constituição Dei Verbum, sobre a Divina Revelação (n. 9). Mas a Igreja pode e deve também fazê-lo porque o próprio Senhor se encontra presente, ressuscitado no meio de nós, oferecendo, por meio dos sacramentos, o caminho da salvação de cada um e de todos.
E isso exige de cada um e de todos uma vida comunitária real, porque apenas uma comunidade real, concreta (não uma comunidade ideal ou imaginária, um ente fictício) é presença do ressuscitado. Comunidade onde todos tomam consciência de serem membros do Corpo de Cristo e, por isso, membros uns dos outros. Comunidade que cuida e se interessa por todos os baptizados que a constituem, nos vários domínios da sua vida e da sua actividade - do trabalho ao lazer, da família à vida de oração, da comunidade política às condições de vida de cada um. Mas comunidade que não se envergonha de Jesus Cristo e do seu Evangelho (cf. Rom 1,16), antes O anuncia com ousadia e clareza. Comunidade que sempre propõe e mostra a Cristo Redentor.
3. Quem somos nós, Padres, que hoje, uma vez mais, renovamos a nossa entrega disponível para o serviço de Deus e da Igreja? Somos, precisamente isso: Padres, presença sacramental de Cristo, servos da graça de Deus, "pais" à volta de quem a comunidade se reúne como Corpo de Cristo presente num determinado lugar.
Somos presença sacramental de Cristo. Escolhidos do meio do povo de baptizados, foi-nos confiada a missão de, com a nossa vida, a nossa palavra e as nossas atitudes, recordar constantemente à Igreja e à humanidade que nunca conseguirá salvar-se a si mesma, mas que necessita sempre de Deus - do Deus feito homem que é Jesus, Aquele sobre quem repousa o Espírito.
Somos servos da graça de Cristo. O mesmo é dizer: não somos nós a origem da salvação, nem ela nos foi "vendida" para que dela possamos dispor a nosso gosto, ou sobre ela tenhamos qualquer direito. Somos servos da graça: tornamos presente uma realidade que nos ultrapassa infinitamente mas que assumimos a missão de distribuir com toda a generosidade: "Foi-vos dada uma boa medida, calcada, sacudida, transbordante; a medida que usarem será também usada para vos medir" (Lc 6,38).
Somos "pais" ("padres"), que tendo a missão de tornar presente o Pai, assumem a tarefa de construir, de unir a comunidade que lhes foi confiada, cuidando do seu alimento espiritual, da sua educação e saúde na fé. Cuidando que seja, em primeiro lugar e sempre, comunidade, família, a referir-se constantemente a Jesus. Padres: próximos de Deus, próximos dos outros padres e do bispo, próximos dos outros irmãos e de toda a humanidade, particularmente dos que mais sofrem, como gosta de sublinhar o Papa Francisco.
Creio que posso dizer em nome de quantos aqui nos encontramos - digo-o, ao menos, em meu nome: não sou digno desta missão que me foi confiada e me ultrapassa de sobremaneira. Mas, uma vez que ela me foi confiada, por mera graça do Senhor, não posso deixar de a desempenhar, e não posso deixar de me procurar converter, quotidianamente, para que a minha vida corresponda cada vez mais à missão que me foi entregue.
Rogai por mim ao Senhor. Roguemos todos uns pelos outros. Construamos a comunidade que nos foi confiada. Vivamos verdadeiramente como "Padres", presença do Pai que a todos quer chegar, e que a todos quer oferecer a vida eterna.
+ Nuno, Bispo do Funchal