Homilia na Imaculada Conceição 2021

08-12-2021

IMACULADA CONCEIÇÃO

Sé do Funchal, 08 dezembro 2021


"Faça-se em mim segundo a tua palavra" (Lc 1,38)

1. "Conceberás e darás à luz um Filho, a quem porás o nome de Jesus". Nestas palavras do Anjo dirigidas à jovem de Nazaré, não se encerra uma simples notícia de gravidez, ainda que fosse, porventura, uma gravidez não desejada: não seria, para tal, necessária a presença de qualquer anjo; bastaria que a novidade fosse anunciada por um qualquer ser humano, como sucede habitualmente.

A questão que Deus coloca a Maria é antes acerca da sua disponibilidade para fazer parte, como protagonista, daqueles momentos únicos da história - do centro da história da humanidade! - em que Deus se fez homem, e o mundo velho se viu transformado e conduzido inevitavelmente para "a vida nova dos filhos".

Diante de Maria, não se encontra um destino empolgante; não se encontra a fortuna do poder; não se encontra a felicidade fácil e sedutora duma Cinderela. Diante de Maria encontra-se a espada que haveria de trespassar a sua alma; encontram-se momentos de escuridão e de incompreensão; encontra-se a perseguição; a presença junto da Cruz; encontra-se a missão junto da Igreja - esse povo com gente de dura cerviz, de coração de pedra, renitente à transformação pelo Espírito; esse povo que é cada um de nós, pecador.

Uma vida pacata e tranquila na pequena aldeia de Nazaré do ano "zero" da história do universo vê-se, de repente, transformada, arrastada para o centro dos acontecimentos!

Com razão, S. Bernardo, naquele seu célebre Sermão em louvor da Virgem Mãe, como que nos dá a intuir a aluvião de pensamentos contraditórios que, naquele instante, terão passado pela mente e pelo coração da Virgem. E conclui: "Abre, ó Virgem Santa, o coração à fé, os lábios ao consentimento, as entranhas ao Criador. Eis que o desejado de todas as nações está à tua porta e chama. Se te demoras e Ele passa adiante, terás então de recomeçar, dolorosamente, a procurar o amado da tua alma. Levanta-te, corre, abre. Levanta-te pela fé, corre pela devoção, abre pelo consentimento. Eis a serva do Senhor, disse a Virgem, faça-se em mim segundo a tua palavra" (LH I 309).

Quando Maria disse: "faça-se em mim segundo a tua palavra", consentiu em todo o plano de salvação que Deus tinha arquitectado para a humanidade. Permitiu que ele se realizasse. Nesse mesmo momento, Maria tornou-se figura da Igreja, encarnando e resumindo a fé cristã de um modo admirável e único, na sua perfeição. É a essa fé virginal e fecunda que cada um de nós deve sempre aspirar. É para ela que havemos de caminhar.

2. Maria tornou-se, assim, a primeira crente da Nova Aliança, protótipo da fé da Igreja, ventre fecundo de acolhimento do Verbo. Tornou-se, ela própria, a imagem acabada da Igreja.

Este papel da Virgem Maria, a sua função no seio da Igreja - função de representar, de dar corpo, de resumir e, ao mesmo tempo, de constituir o ponto mais alto da fé, é apresentada dum modo plástico (mas muito claro) em diversas imagens de Nossa Senhora da Misericórdia ou do Amparo.

Encontramos mesmo aqui ao lado, nesta nossa Catedral, uma dessas imagens. Nela, Nossa Senhora é apresentada, ao centro, de pé, ocupando o primeiro plano, coroada como Rainha do Céu e da Terra - Rainha de Portugal, dizemos nós, fazendo nossa a consagração de toda a nação portuguesa, realizada por D. João IV, há 375 anos. Naquela imagem, dizia, a Virgem é apresentada de pé, coroada. Contudo, o seu manto não envolve apenas a figura de Maria. É um manto grande, aberto. E, debaixo dele, procurando refúgio dos mares adversos, encontra-se toda a Igreja. Ali estão os santos; ali se encontram os papas e os bispos; ali se refugiam os religiosos e os leigos, a nobreza e o povo. Ali todos encontram o seu lugar, o seu refúgio, o porto seguro da salvação.

Bem necessitam deste refúgio, dada a sua condição de pecadores, de mendigos de misericórdia, de peregrinos de Deus, fracos e cheios de medo. Bem necessitam porque a sua fé é frágil e com dificuldade em se expressar e se fazer ver. Sob o manto da Virgem, todos encontram o abrigo seguro.

Contudo, Nossa Senhora é bem mais que este "Porto Santo" no meio das tempestades da vida. Porque a Virgem está ali, de pé, com as mãos erguidas para o Céu, em sinal de oração e profissão de fé. Com efeito, a fé que os fiéis de todos os tempos vivem e professam encontra na Virgem o seu primeiro sujeito.

Porque a fé consiste no acolhimento total e completo da revelação, da Palavra divina, de modo a que se faça carne, vida, existência, como afirma o Concílio Vaticano II: "pela fé, o homem entrega-se total e livremente a Deus, oferecendo «a Deus revelador o obséquio pleno da inteligência e da vontade»" (DV 5). Quer dizer: assentindo com a inteligência e transformando em vida o encontro entre Deus e o ser humano. Dito ainda de outro modo: "amarás o Senhor teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças" (Lc 10,27) - ou seja: de um modo Imaculado, virginal.

Esta é a fé da Igreja Imaculada, que em Maria encontra o seu protótipo. Cada um de nós, marcado pelo pecado, acolhe a fé de modo imperfeito: imperfeito na sua formulação doutrinal e - sobretudo - imperfeito na sua vivência quotidiana. Maria, ao contrário, acolhe a fé de modo Imaculado, perfeitíssimo, pois Ela é a "Cheia de Graça", de quem o próprio Deus se enamorou desde a criação do mundo, cumulando-a de todas as graças, de forma a que pudesse ser a digna Mãe do Filho de Deus, e a história do mundo se transformasse em história da salvação.

Isso mesmo reconhecemos nós em cada celebração da Eucaristia, quando, em nome de todos, o sacerdote reza: "Não olheis aos nossos pecados mas à fé da vossa Igreja". O mesmo é dizer: "Senhor Jesus, cada um de nós é fraco, frágil, pecador. Se olhais para os nossos pecados, ficaremos sem esperança, condenados à morte. Não olheis, portanto, para os nossos pecados. Mas se olhardes para a fé da Igreja, aquela fé que em Maria encontra a sua expressão perfeita, imaculada, virginal, o amor todo inteiro, sem divisão - se olhardes para a fé da Igreja, que é a fé de Maria, nesse caso podemos ficar cheios de esperança, certos da salvação.

3. Temos assistido, nos últimos tempos, a um claro enfraquecimento da vida da fé. A fé da Igreja mantém-se; mas, na vida de cada cristão, parece ver-se enfraquecida a sua apropriação. O acolhimento do amor de Deus de um modo total, íntegro, parece ter-se tornado mais frágil e temeroso.

Muitos são os que colocam em causa os próprios alicerces da fé; muitos mais aqueles que vivem sem qualquer referência à fé, como se fé e vida fossem dois compartimentos estanques. Alguns chegam mesmo a apresentar-se como juízes da fé, recusando conceder à fé da Igreja ao menos o benefício devido a afirmações pensadas, purificadas, encontradas por entre dúvidas e caminhos percorridos ao longo de dois mil anos. Afirmam a opinião pessoal, subjectiva, querendo impô-la a toda a Igreja, não raras vezes para justificar as escolhas erradas que realizaram (ou foram levados a realizar) na sua vida.

Hoje é pois tempo, mais do que nunca, de olharmos para a Virgem Imaculada e a ela nos confiarmos. Colocando nela o nosso olhar, acolhamos o seu "Faça-se em mim segundo a tua palavra". Confiando nela, deixemos que nos receba sob o seu manto de luz, e que, na nossa palavra, pensamento, e vida, a Sua profissão de fé seja cada vez mais a nossa.

"À vossa protecção nos acolhemos, Santa Mãe de Deus. Não desprezeis as nossas súplicas em nossas necessidades, mas livrai-nos de todos os perigos, ó Virgem gloriosa e bendita!"

+ Nuno, Bispo do Funchal