Homilia na Festa de São Tiago Menor 2019

01-05-2019

SOLENIDADE DE S. TIAGO MENOR

Catedral do Funchal

1 de maio de 2019

"Ele é o protector dos que O procuram de coração sincero".

1. Toda a vida cristã - devemos mesmo dizer: a vida dos biliões de crentes existentes no mundo inteiro, qualquer que seja a sua religião - confronta-se com uma questão colocada não tanto pela ciência ou pela técnica contemporâneas quanto por aquilo que poderíamos chamar de "cientismo" e, sobretudo, por um modo informal (mas habitual) de viver contemporâneo: Deus pode ou não intervir nos destinos do universo? Deus pode ou não intervir na vida do homem criado? Se o cientismo nega à partida essa possibilidade por razões ideológicas, o modo comum de viver nega-o, essencialmente, por comodidade: vive-se como se Deus não existisse ou não contasse.

Não se trata apenas de afirmar ou negar a existência de Deus. Trata-se também de, no caso obviamente afirmarmos a Sua existência, nos colocarmos a questão acerca do tipo de relação que Deus tem com a realidade criada. Limitar-se-á Deus a criar o universo e a dotá-lo de leis, deixando que o criado prossiga o seu destino, ou poderá fazer caminho com a Sua criação, e em particular com o ser humano? Que tipo de intervenção tem Deus na história humana?

Um Deus que permanecesse indiferente, distante, frente ao destino das suas criaturas, não seria, decididamente, o Deus de amor com que nos deparamos ao contemplar a própria natureza e mesmo a própria vida humana, e que, espontaneamente, nos remetem, nos convidam a contemplar uma realidade maior. Deus não é indiferente à nossa existência. Não vive impassível num sereno olimpo, enquanto o ser humano sofre, luta, morre.

Todas as religiões, de um ou outro modo, são a afirmação desta verdade. Deus intervém na história, na vida concreta do mundo e da humanidade. E, o que é mais, intervém nela como Deus de amor, como Deus que detesta o mal e abre, diante da nossa existência, a estrada do bem. O bem (chamemos-lhe céu, felicidade plena, harmonia, ou simplesmente eternidade) consiste na vida do homem com Deus. Deus aparece, aliás, como a possibilidade última de uma esperança, de uma vida minimamente digna, quando o pobre vê fechados todos os caminhos para uma vida feliz. Não fora Deus cuidar do pobre e do oprimido, não fora Deus a ter a última palavra, decisiva, final, como poderia o pobre, sem esperança nos poderes deste mundo, erguer os olhos e continuar a viver?

Mas ao cristianismo coube ir mais longe que todas as outras religiões, não pelo génio de um qualquer homem mas por iniciativa do próprio Deus - o mais longe, surpreendente e impensável que nunca alguém imaginou, nem sequer a revelação veterotestamentária: em Jesus de Nazaré, Deus faz-se homem, verdadeiramente homem, sem deixar nunca de ser Deus.

Ao fazê-lo, toda a vida humana, nos seus mais diferentes aspectos, se torna lugar para esse diálogo incessante das duas liberdades: a liberdade criadora, infinita, de Deus, e a liberdade criada, finita, do homem.

Liberdade finita, esta última (e, por isso, sujeita ao erro, ao mal, ao pecado e aos limites daquele que a traz consigo, o ser humano); liberdade que se vê, não raras vezes subjugada pela natureza que a envolve; liberdade dependente de tantos factores que lhe são externos - mas liberdade efectiva, chamada a abrir caminhos de existência, interpelada constantemente pelo Amor a fazer história, pessoal e colectiva.

Deus não apenas pode como, de facto, intervém na história. Mais: ao fazer-se homem em Jesus de Nazaré, Deus dá à própria história humana um centro - e, por isso, dizemos "antes" e "depois" de Cristo - um centro ao qual tudo é referido. O antes assume-se como preparação, espera. O depois olha-se como cumprimento, realização, desenvolvimento. O limite desta intervenção é sempre e unicamente a própria liberdade humana.

2. As sucessivas epidemias de peste que assolaram a nossa cidade e toda a nossa ilha no início do séc XVI trouxeram à consciência dos nossos antepassados, em particular num certo dia 11 de Junho de 1521, uma atitude essencial para se entenderem a si mesmos (e para nos entendermos a nós mesmos) como seres humanos: por nós, não somos capazes de nos salvar; em cada momento da nossa existência dependemos de Deus.

Não somos, obviamente, marionetas nas mãos de um ser que joga com a nossa existência, incapazes de vontade. Pelo contrário, somos seres dotados de uma constante e necessária capacidade de escolha. E, mais ainda, de uma constante e necessária capacidade de escolha do bem, quer dizer: de liberdade. Mas não somos capazes de nos salvar a nós mesmos, de construirmos sozinhos a salvação. Essa é, aliás, a trágica (mas óbvia) conclusão da história do século passado, quando o ser humano procurou erigir impérios e sistemas políticos que colocavam Deus fora do horizonte humano e que degeneraram em guerras e lutas que provocaram milhões de mortos.

Não somos capazes de nos salvar a nós mesmos. Devemos afirmá-lo mesmo considerando hoje a situação que conduziu à escolha do nosso padroeiro diocesano. Hoje, com os conhecimentos que temos ao nosso dispor, poderíamos olhar para trás e, numa atitude soberba, julgá-los simplesmente ignorantes.

Contudo, o facto é que, mesmo com todos os conhecimentos científicos e tecnológicos, não dispomos da totalidade da nossa vida nem da nossa existência. Basta recordar os vários acontecimentos trágicos que nos últimos tempos bateram à nossa porta. E continuam a existir tantas pestes! Pestes que são epidemias, doenças endémicas, e para as enfrentar necessitamos da força recebida de Deus. E outras tantas pestes, não menos graves (pelo contrário), que nos retiram o sentido da existência, que fecham os horizontes da nossa vida. Precisamos de Deus e dos seus amigos e nossos protectores. Precisamos da presença de um Deus que nos salve de nós mesmos e da tentação, sempre presente, de espalhar a peste do egoísmo e da auto-suficiência; a peste do domínio do próximo e do seu tratamento como objecto; a peste do domínio da natureza, que esgota hoje os seus recursos e impede a vida das gerações vindouras.

Precisamos da presença de um Deus que nos salve, que nos continue a salvar e que nos ajude a viver nos grandes momentos de dificuldade e naqueles do simples quotidiano.

Confiemo-nos ao Senhor Jesus e à intercessão daquele Tiago, que fazia parte do grupo dos Doze, a quem o Senhor chamou "amigos". E cujo título de "menor" significa apenas "mais jovem". Peçamos que hoje como no início da vida dos madeirenses, Jesus nos continue a proteger, a dar força, a caminhar e a construir uma sociedade onde todos possam progredir no sentido de uma vida sempre é cada vez mais humana. E Tiago continue sempre a interceder, a cuidar de todos e cada um dos madeirenses e portosantences.

+ Nuno, Bispo do Funchal