Homilia na Dedicação da Catedral
SOLENIDADE DA DEDICAÇÃO DA CATEDRAL
Funchal 18 de Outubro de 2019
Leituras: Ez 47, 1-2.8-9.12
Sl 45 (46), 2-3.5-6.8-9
1Ped 2, 4-9
Mt 16, 13-19
Na primeira leitura, o Profeta Ezequiel, em nome de Deus, anunciava aos exilados a reconstrução da cidade de Jerusalém, para onde eles haveriam de regressar, terminado o tempo do cativeiro. Quando estas palavras de Ezequiel foram proferidas, o Profeta partilhava o exílio em Babilónia com os seus compatriotas. Com efeito, em 587 a.C. Nabucodonosor tinha arrasado completamente a Cidade Santa e, com ela, o Templo de Deus.
O Templo novo que o Profeta anunciava, erguido no centro da reconstruída Jerusalém, daria origem a uma torrente, primeiro insignificante, mas, finalmente, um caudal impossível de atravessar. E, mais que isso: «Esta água - dizia Ezequiel - [...] entra no mar, para que as suas águas se tornem salubres. Todo o ser vivo que se move na água onde chegar esta torrente terá novo alento e o peixe será mais abundante. Porque aonde esta água chegar, tornar-se-ão sãs as outras águas e haverá vida por toda a parte aonde chegar esta torrente" (Ez 47,8-9).
Do Templo novo, cheio da presença divina, surge a vida; surge a água que transforma, converte, as águas salubres do mar.
Sem dúvida, o profeta referia-se à reconstrução de Jerusalém, quando, terminado o exílio, o povo regressasse à sua terra, como aconteceu em 538 a.C. Mas, uma vez pronunciada, uma profecia apenas se encerra em Deus, quando Ele for tudo em todos. Por isso, o livro do Apocalipse (cap. 21-22) retomará esta visão de Ezequiel, agora sim como profecia realizada plenamente, no novo céu e na nova terra, na cidade definitiva de Deus, construída e oferecida por Ele para que os eleitos aí possam habitar:
«Esta é a morada de Deus entre os homens.
Ele habitará com eles;
eles serão o seu povo
e o próprio Deus estará com eles
e será o seu Deus.
4 Ele enxugará todas as lágrimas dos seus olhos;
e não haverá mais morte,
nem luto, nem pranto, nem dor.
Porque as coisas primeiras passaram.»
[...] Mostrou-me depois um rio de água da vida,
límpido como cristal,
que saía do trono de Deus e do Cordeiro.
No meio da praça, de um lado e do outro do rio,
há árvores da vida que frutificam doze vezes,
dando fruto a cada mês;
e as suas folhas servem para curar as nações. [...]
Não mais haverá noite,
nem terão necessidade da luz da lâmpada,
nem da luz do Sol,
porque o Senhor Deus
irradiará sobre eles a sua luz
e serão reis pelos séculos dos séculos»
(Ap 21,3-4. 22,1-2.5).
Entre estas duas cidades e estes dois templos - aquela cidade de Jerusalém, onde o Templo haveria de ser reedificado após o regresso do exílio, e aquela outra cidade final, a nova Jerusalém, cujo Templo é o Senhor, o Deus Todo Poderoso, e o Cordeiro (Ap 21,22) - entre estas duas cidades, que lugar existirá para nós, ainda peregrinos na terra e na história?
Como cristãos, vivemos, já agora, dessas realidades definitivas, pois que Cristo, o Cordeiro, é a realidade definitiva, e Ele se encontra no meio de nós: depois da ressurreição, o mundo definitivo de Deus irrompe na nossa história e no nosso tempo, dando-lhe uma sempre nova qualidade.
Mas, como peregrinos da plenitude divina, ainda necessitamos destes templos de pedras, que nos recordam precisamente quem somos e que Deus não nos abandona, antes vive no meio de nós como Deus-connosco. E, deste modo, o templo recorda-nos a nossa condição de cristãos, pedras vivas, homens transformados pelo baptismo em Templo vivo do Deus vivo - vida do Espírito a transformar as águas salubres, a dar vida a um mundo velho sempre marcado pela morte, mesmo que repleto de pequenas novidades.
Com efeito, o baptismo transforma-nos em templos de Deus. E confere-nos uma missão: a de sermos a presença transbordante de Deus no meio da cidade, a mostrar e a conferir um novo sentido à vida de quantos partilham connosco a existência. Uma presença iluminadora, animadora, próxima e cheia de esperança. Somos a vida de Deus a dar vida e uma nova qualidade à cidade - "a anunciar os louvores d'Aquele que nos chamou das trevas para a sua luz admirável" (1Ped 2,9).
Desde 1517 que os cristãos se reúnem aqui, nesta igreja catedral, mãe de todas aquelas espalhadas pela nossa diocese. Hoje, ao celebrarmos a sua dedicação, importa que nos perguntemos: quem somos nós, que nos reunimos nesta Catedral (e nos outros tantos templos da nossa diocese), para escutar a Palavra e nos alimentarmos do Pão da Vida? Somos cristãos, membros do Corpo de Cristo, Pedras vivas do Templo definitivo de Deus. Que missão temos? A missão de, cheios do Espírito Santo que recebemos no baptismo, contagiarmos com a vida de Deus a existência de tantos que ainda não O conhecem e, por isso, não conhecem a felicidade de ser de Cristo, cristãos.
Há dias, no passado dia 9 de outubro, celebrávamos aqui, nesta Sé, o Patrocínio da Senhora do Monte. Celebrávamos o facto de Nossa Senhora ter defendido a cidade e seus habitantes de aluviões destruidoras, de águas, de torrentes que arrastavam pedras e semeavam a morte e o medo. Hoje celebramos uma outra torrente de água, que não havemos nunca de temer, antes havemos de lançar pela nossa cidade: a torrente do Espírito Santo, água que dá vida, que transforma a existência e torna Cristo presente na vida de todos.
Peçamos ao Senhor que, tal como sucede de há 502 anos a esta parte, também nós sejamos capazes de ser os missionários que Cristo, o Templo definitivo e verdadeiro de Deus, nos pede: aluvião que enche de vida divina a cidade dos nossos contemporâneos e transforma a sua vida salubre em torrente que dá fruto abundante.
+ Nuno, Bispo do Funchal