Homilia na Abertura do Ano Jubilar do Beato Carlos D'Áustria

25-03-2022

ABERTURA DO TEMPO JUBILAR

Igreja do Monte, 24 de Março de 2022


"Eu venho, Senhor, para fazer a vossa vontade"

1. "Hic Verbum Caro factum est": são estas as palavras gravadas no altar da Igreja da Anunciação, em Nazaré - o lugar onde, desde o século I, os cristãos celebram o grande mistério da solenidade de hoje: Deus fez-se homem.

Fez-se homem num lugar (a casa da Virgem Maria, em Nazaré) e num tempo (S. Lucas diz-nos que ocorreu no reinado do Imperador romano César Augusto e quando Quirino era governador da Síria - cf. Lc 2,1). Maria ficou grávida do Espírito Santo, e ofereceu de si a carne humana (com tudo o que ela comporta) ao Filho de Deus, a Jesus, que começou a crescer no seu seio 9 meses antes do Natal. A celebração de hoje dá-nos a graça de viver aquele mistério único da história da salvação e da história do mundo.

A esse mesmo momento, central para a história, fazia referência a IIª Leitura que acabámos de escutar. Nela, o autor da Carta aos Hebreus dizia: "Ao entrar no mundo, Cristo disse: «Não quiseste sacrifícios nem oblações, mas formaste-me um corpo. Não te agradaram holocaustos nem imolações pelo pecado. Então eu disse: «Eis-me aqui; no livro sagrado está escrito a meu respeito: Eu venho meu Deus para fazer a Tua vontade»" (Heb 10,5-7).

Ou seja: ao contrário dos sacerdotes da Antiga Aliança, Jesus não veio para oferecer a Deus coisas ou animais. Ele próprio é a oferenda, e Ele próprio é o sacerdote (o Sumo-sacerdote): a sua vida, as suas acções, as suas palavras, todo o seu ser, desde o momento em que foi concebido no seio da Virgem Maria até ao momento da sua morte - aquele momento em que, na cruz, o Filho de Deus exclama: "Tudo está consumado" (Jo 19,30) -, toda a sua existência é oferecida a Deus. Tudo é do Pai porque Jesus não faz nada que não seja cumprir a vontade do Pai: nada tem de seu; tudo é recebido e oferecido ao Pai; essa é a missão de Jesus, o objectivo da própria encarnação: tornar o Pai presente em tudo, sempre; dar a cada momento da história e a cada momento da vida de todo e qualquer ser humano a qualidade da presença de Deus.

Ao fazer esta oferta de si mesmo, de todo o seu ser - oferta total, plena, sem defeito nem mancha, disponibilidade, obediência completa à vontade do Pai - Jesus introduziu na história uma realidade radicalmente nova: Deus é este homem, Jesus de Nazaré; e este homem (que é Deus) passou a dizer, a mostrar Deus. Pode fazê-lo porque recebeu carne humana da Virgem Maria: pode ser visto, escutado, tocado (cf. 1Jo 1,1); podemos estar com Ele, perguntar-Lhe: "Onde moras?", e escutar o seu convite: "Vinde e vede" (cf. Jo 1,35-39).

Deste modo, a partir do momento em que o Verbo se faz carne, é possível a um Homem prestar ao Pai o louvor pleno e perfeito, o culto verdadeiro. Desde Adão até Jesus, esse culto era defeituoso por causa do pecado: o ser humano teve que se refugiar nos sacrifícios, nas ofertas - sempre poucas e pequenas, diante da imensidão da bondade divina. Mesmo o Antigo Testamento, com as prescrições da Lei e dos Profetas, padecem desta incapacidade. Agora, Jesus Cristo presta ao Pai o culto perfeito, pleno, total: "Eu venho, Senhor, para fazer a Tua vontade".

E desta sua oferenda perfeita e total, foi-nos dado a nós (que pelo baptismo somos membros do corpo de Cristo) a possibilidade de participarmos e de também nós a oferecermos. Vivemo-lo ainda no modo de peregrinos - quer dizer: participando já de Cristo ressuscitado mas sofrendo ainda a fraqueza do nosso pecado e das nossas incapacidades. Quer dizer: vivemo-lo de modo sacramental (porque é isso o sacramento: no tempo, por meio da Cruz do Senhor, vivemos já da glória de Deus que nos transforma, apesar de ainda sermos peregrinos do Céu).

Por isso, em cada Eucaristia, Jesus renova uma vez mais o seu único, pleno e perfeito sacrifício, ultrapassando as barreiras do tempo e do espaço, graças à acção do Espírito Santo. Fá-lo por meio do sacerdote que tornando a Cristo presente no meio do seu povo, pronuncia as palavras do Senhor na Última Ceia. Mas fá-lo para todos nós, de forma a que, comungando o Senhor (escutando a sua palavra, participando na celebração juntamente com os irmãos, e comungando sacramentalmente o seu Corpo e Sangue) nos transformemos nele.

E tal facto transforma completamente o nosso modo de viver: fazendo um com Cristo, também nós, cada um de nós, é uma nova criatura - que, com Cristo, deve oferecer ao Pai a sua vida de cada momento. O mesmo é dizer: de modo a que cada um de nós possa perceber a vontade do Pai, deixando que ela nos transforme a existência e se cumpra na nossa vida - em toda a nossa vida! Para isso, há certamente que procurar essa vontade, que a perceber, discernir; e depois, com a ajuda da graça divina que nunca nos abandona nem nos falta, procurar cumpri-la o melhor possível.

Assim, a solenidade de hoje convida-nos, em primeiro lugar, a olhar para o Deus feito homem que é Jesus, e a agradecermos o Salvador que o Pai nos dá, que nos permite aproximarmo-nos de Deus e O louvarmos plenamente. Mas, ao mesmo tempo, coloca diante dos nossos olhos a tarefa quotidiana de, também nós, darmos carne à Palavra divina, de forma a que a nossa carne de pobres pecadores, limitados e incapazes, possa, apesar disso, ser revestida e transformar-se em Palavra de Deus dirigida a toda a humanidade (sobretudo àqueles que convivem connosco): verdadeira encarnação, à mão de todo e qualquer ser humano. "Extensão da encarnação" - nisso se resume a vida de todos e de cada um dos baptizados. Mas também "santidade". Verdadeiro acto de misericórdia (quer dizer: acto de amor constante e fiel) da parte de Deus.

2. Hoje, de um modo particular, acolhemos a misericórdia divina que nos chega a partir da concessão do Santo Padre para que esta igreja de Nossa Senhora do Monte seja, até ao próximo dia 21 de Outubro, um local de misericórdia, onde os pecadores (que somos todos nós) se deixem transformar na imagem, na "extensão de Cristo".

Que a nossa carne se torne Palavra de Deus - quer dizer: que vendo o modo como vivemos e somos, todos percebam como Deus está próximo e a todos ama. É este o caminho de santidade que somos convidados a percorrer: por entre as dificuldades da nossa vida, por entre os nossos pecados e incapacidades, deixamo-nos transformar interior e exteriormente pelo próprio Deus, em imagem, em presença de Cristo.

É por isso importante o acolhimento, o pedido e a vivência da indulgência: o nosso pecado deixa sempre marcas, que vão para além da absolvição e da penitência que fazemos na sequência do momento de confissão sacramental (habitualmente um momento de oração ou uma esmola). O nosso pecado, com efeito, deixa marcas nos irmãos e no mundo à nossa volta. E precisamos da força de Deus para que estas sejam reparadas na sua totalidade - só Deus as pode, de facto, reparar! Pedir-lhe que o faça, e que, através de nós, o seu amor tudo transforme: isso é a indulgência que a Igreja nos propõe viver, de um modo particular nestes meses, entre hoje e o dia 21 de outubro próximo.

3. Há cem anos - passam no próximo dia 1 de abril - morria, aqui bem perto, na Quinta do Monte, o "Santo Imperador" Carlos de Áustria. Ele próprio resumiu deste modo a sua vida, numa das suas últimas palavras, dirigidas à esposa, a Imperatriz Zita: "Quero dizer-te claramente: eu procuro sempre e unicamente conhecer a vontade de Deus, sempre e em todas as coisas, o melhor possível, e segui-la de modo mais perfeito". Eis a síntese da vida de um santo. Quer dizer: de um homem, pai de família e governante, que deixou que a sua existência fosse moldada pelo amor divino e, desse modo, falasse, fosse presença de Deus, Palavra viva, Verbo feito carne!

Ou seja: este homem, rico e poderoso, que morreu pobre e abandonado pela maioria (que não pelo povo madeirense, que sempre o acompanhou durante a sua estada na nossa Ilha), tornou-se de verdade numa presença de Cristo. A sua carne - a sua vida, as suas palavras, o modo como vivia e como agia, o cuidado pela sua família - toda a sua existência se viu transformada em verdadeira palavra que mostrava como Deus está bem presente, a partilhar a nossa vida, no nosso mundo.

E isso mesmo foi confirmado por S. João Paulo II, ao beatificar, no dia 3 de outubro de 2004, a Carlos, último Imperador de Áustria e rei da Hungria, pai de família, devoto da Eucaristia e de nossa Senhora, educador dos seus filhos, rosto e presença do amor de Deus para todos, sobretudo para com os pobres e os que sofrem.

Ou, como afirmou, há pouco tempo, o Papa Francisco: "Carlos de Áustria foi antes de tudo um bom pai de família, e como tal um servidor da vida e da paz. Ele conheceu a guerra, por ter sido soldado no início da Primeira Guerra Mundial. Tendo assumido o reino em 1916, e sendo sensível à voz do Papa Bento XV, prodigalizou-se, com todas as forças, na luta pela paz, à custa de ser incompreendido e escarnecido. Também nisto ele nos oferece um exemplo mais atual do que nunca, e podemos invocá-lo como intercessor para obter de Deus a paz para a humanidade".

No Beato Carlos vemos pois bem concretizada aquela síntese com que a Carta aos Hebreus resumia toda a vida do próprio Jesus: "Eu venho, Senhor, para fazer a tua vontade". Que este tempo, vivido mais intensamente com o Beato Carlos, nos ajude a, também nós, crescermos nesse mesmo caminho, no caminho da santidade.


+ Nuno, bispo do Funchal