Homilia do Bispo do Funchal no Dia da Região

01-07-2020

DIA DA REGIÃO E DAS COMUNIDADES MADEIRENSES

Sé do Funchal, 1 de Julho de 2020

Quero começar por saudar a presença nesta celebração de todas as entidades presentes. Mostram, desse modo, um entendimento real e necessário de como a vida dos madeirenses é, ainda hoje, como de há 600 anos a esta parte, marcada profundamente pela fé. A nossa relação com Deus, como pessoas e como sociedade, foi e é central para a nossa vida; foi e é fonte de valores e critérios para o nosso quotidiano. Ela dá-nos a luz necessária para as escolhas com que em cada momento nos confrontamos, sobretudo para aquelas que dão o sentido a todo o nosso existir e que, por isso, se chamam "fundamentais".

As leituras que acabámos de escutar são aquelas que a liturgia da Igreja nos propõe para o dia de hoje, quarta-feira da XIII Semana do tempo Comum. Não foram escolhidas propositadamente para a efeméride que celebramos. Como Bispo do Funchal, sinto eu o dever, da parte de Deus, de ajudar a quantos aqui estão (eu próprio em primeiro lugar) a confrontar a nossa vida com a Palavra que nos foi proclamada, deixando que ela nos ilumine.

O evangelho que foi proclamado, é retirado do capítulo 8 de S. Mateus (versículos 28 a 34), e termina de um modo dramático: "Toda a cidade saiu ao encontro de Jesus. Quando o viram, pediram-lhe que se fosse embora".

A cidade - toda a cidade, quer dizer: população e seus governantes - pediram a Jesus para sair dali. No seu entender, Jesus já tinha causado demasiados estragos à economia local: curou dois endemoninhados mandando os demónios de que tinha liberto aqueles homens para uma vara de porcos - e estes precipitaram-se e afogaram-se no lago.

São, verdadeiramente, critérios diferentes: os de Jesus e os de toda aquela gente. Não se trata apenas de um homem pecador e mau que se confronta com Deus e que O afasta da sua vida. Nesta narração, é toda uma cidade que assume um outro critério de vida; que expulsa Jesus Cristo do seu meio. É a atitude comum de toda uma região.

O que está em jogo? Está em jogo, antes de mais, o lucro económico. Toda uma vara de porcos que se perdeu. O trabalho de muitos dias. Se não o trabalho de todos, pelo menos o trabalho de alguns. Mas se Jesus começou assim a sua visita a Gádara (hoje a cidade de Umm Qays, na Jordânia) que prejuízos poderia ainda causar nos dias seguintes? Quantos estragos para a economia iria Ele provocar?

Depois, estão em jogo as vidas de dois homens que sofriam, chegando a colocar em causa a vida dos demais: "Eram tão furiosos que ninguém se atrevia a passar por aquele caminho", diz-nos o evangelista. Hoje, diríamos: "delinquentes verdadeiros e irrecuperáveis".

Finalmente, está em questão o lugar de Deus numa sociedade. Está em questão a escolha entre viver com os demónios (viver por entre o que afasta de Deus e é princípio e actuação do mal) ou viver com Deus, tendo Deus por entre o respirar, o existir da cidade.

A nós, parece, desde logo, que aquela gente deixou de ter critérios justos: se Jesus viesse ao nosso encontro, visitar a nossa terra, haveríamos de pedir que se afastasse, haveríamos de o expulsar? Mas, de facto, tal atitude não nos devemos admirar. Essa falta de critérios não é apenas do passado; é também uma realidade dos tempos contemporâneos. E pode ser uma realidade nossa.

Aquela gente preferia viver no meio dos demónios a viver com Deus. É o que sucede quando nos habituamos ao mal. Quando isso acontece, quando nos habituamos ao mal, este passa a ser algo com que se convive pacificamente. Então, deixa de haver lugar para Jesus. Deixa, sequer, de haver lugar para lhe oferecer uma possibilidade de falar, de encontrar, de curar. Na primeira oportunidade, expulsamos Jesus da região. Não faz falta. Pelo contrário: incomoda. Estraga o nosso modo habitual de viver. Denuncia as auto-justificações que fazemos do nosso pecado. Até pode fazer mal à economia! E, a um dado momento, Deus deixa mesmo de ser necessário. Deixamos de sentir a sua falta, a falta da luz da sua Palavra, do alimento quotidiano que Ele nos oferece. Vivemos com o mal, mas isso parece ser preferível a ter que viver com Deus que nos denuncia a corrupção em que caímos!

Conhecemos, porventura, o caso de algumas pessoas que vivem desse modo - que se desabituaram completamente de Deus; que preferiram a sombra à luz da verdade; que se habituaram de tal forma ao mal (ainda que sintam algum incómodo nisso), que Deus se converteu num incómodo muito maior! E se a vida dessas pessoas constitui um drama - e sabemos que constitui um drama real e terrível! - como será a vida de toda uma sociedade que se habituou a viver desse modo: uma sociedade que expulsou Deus do seu meio porque se habituou ao mal e assim escolheu viver?

Mas o verdadeiro drama de uma sociedade que afastou Deus do seu meio, que se habituou ao mal, é que, nesse mesmo momento, deixou também de haver um verdadeiro lugar para o homem! Uma sociedade que afastou Deus - como no caso dos habitantes de Gádara - prefere os porcos e o lucro que deles se retira à vida e à integração dos homens curados. Como afirmam vários pensadores contemporâneos, na vida de uma pessoa ou de uma sociedade, o lugar de Deus nunca fica vazio. Quando Deus é afastado ou esquecido, nesse preciso momento um qualquer demónio ocupará o lugar divino.

Por isso, partindo da narração evangélica, o nosso espírito não pode deixar de se interrogar: Que lugar tem Deus no modo de viver, no quotidiano e nas escolhas fundamentais dos madeirenses - de todos e de cada um? Não nos estaremos, também nós, a habituar ao mal e a deixar Deus fora das nossas vidas?

Quando o aborto, a eutanásia, o divórcio, a pobreza, a vida dos sem-abrigo se tornam algo de habitual e comum que já não nos incomoda; e quando (ao contrário) Deus, os seus critérios, os seus mandamentos, a luz com que Ele denuncia o nosso pecado, se transformam num incómodo - quando tudo isso sucede connosco, não estaremos, também nós, a habituar-nos perigosamente ao mal? Não estaremos, também nós, a convidar Deus a sair das nossas vidas e da vida da nossa Região?

E quando participamos na liturgia, não estaremos, porventura, a cumprir apenas o calendário religioso, mas esperando (de forma mais ou menos secreta) que o nosso saber e as nossas capacidades técnicas e científicas resolvam todas as questões humanas que se nos colocam?

No final da primeira leitura (Am 5,14-15.21-24), Deus, por meio do profeta Amós, advertia o povo de Israel contra o ritualismo - quer dizer, o culto meramente formal, em que aos ritos não corresponde a atitude sincera do coração: "Eu detesto e desprezo as vossa festas, desgostam-Me as vossas reuniões sagradas. [...] Afastai de Mim o barulho dos vossos cânticos, que Eu não quero ouvir o som das vossas harpas. Mas fazei que o direito corra como as águas e a justiça como rio inesgotável".

Devemos, portanto, afirmar e reconhecer que a primeira dimensão do culto, do verdadeiro e autêntico louvor a Deus, é constituída pelo respeito da justiça e do direito como realidades devidas a todos e a cada cidadão. Só depois surgem os cânticos, as orações, os espaços sagrados, as festas. Ou, para continuarmos com as palavras do Profeta: "procurai o bem e não o mal".

Hoje, damos graças a Deus por aquilo que somos como Região e por quanto Ele nos ajudou e ajuda, a nós madeirenses, a ser e a viver. Queremos que Jesus Cristo seja sempre bem vindo à nossa Ilha, que não se poderia entender sem a Sua presença - no passado, no presente e queremos, também, no futuro. Porque apenas com a presença de Deus numa sociedade e na vida de cada um dos seus cidadãos podemos começar a garantir o lugar e o respeito da dignidade de cada vida humana.

Esse é o começo do culto autêntico e verdadeiro, a que, por misericórdia divina, não podemos deixar de acrescentar o canto, a celebração e a festa - sempre no compromisso de fazer prevalecer o direito e a justiça, e de procurarmos fazer o bem e não o mal.

+ Nuno, Bispo do Funchal