Homilia do Bispo do Funchal na Festa de Nossa Senhora do Monte

15-08-2021

SOLENIDADE DA ASSUNÇÃO DE NOSSA SENHORA

Igreja do Monte, 15 de Agosto, de 2021

1. As leituras de hoje colocam diante de nós a realidade final do nosso existir. Peregrinos na terra, somos convidados a olhar para a meta do nosso caminho - que o mesmo é dizer: para a finalização de tudo quanto foi criado por Deus.

Esta obra-prima, Deus iniciou-a quando, no silêncio, pensou o mundo; começou a executá-la no início dos tempos, criando, dando ser a tudo o que existe por meio da sua Palavra; tornou-a definitivamente possível e salva quando, na plenitude dos tempos, a Palavra se fez Homem em nosso Senhor Jesus Cristo, para nos redimir e assumir na sua divindade.

Hoje, na pessoa da Virgem Maria, Deus mostra-nos a vida eterna como realidade possível, concreta, e não como simples utopia, sonho, desejo humano. Com efeito, a Virgem Maria foi, como nós, criada por Deus; como crente, distinguia-se por escutar a Palavra de Deus, por a acolher no seu coração, como fazem os discípulos; chamada a dar carne humana ao Verbo divino, pronunciou o "sim" disponível de quem procura fazer em tudo a vontade de Deus; seguindo o Senhor Jesus pelos caminhos da Galileia, sofreu com Ele a cruz salvadora; identificada com Cristo na morte, viveu o gozo da ressurreição; com os outros discípulos, acolheu, no dia de Pentecostes, o Espírito da Vida, acompanhando assim a Igreja desde o início - ela que se deveria tornar imagem e realização plena do que significa ser santo, ser cristão.

Em Maria, vemos como ao ser humano é oferecida a vida de Deus; como também nós podemos gozar da plenitude da alegria; vemo-nos perfeitamente realizados; percebemos como podemos atingir a meta do nosso viver, os desejos mais profundos do nosso coração.

Com efeito, a glorificação da Virgem, assumida em corpo e alma por Cristo ressuscitado, é a glorificação do humano, o resumo do nosso viver pessoal e comunitário - realização antecipada da escatologia que o autor do Apocalipse nos dava a contemplar na Iª Leitura, ao apresentar a mulher vestida de sol, com a lua debaixo dos pés e uma coroa de doze estrelas na cabeça. Por isso, o Apóstolo S. Paulo podia dizer na IIª Leitura que este é o destino de quantos seguem o Ressuscitado.

Deus não é apenas o começo do nosso existir: é também o seu fim, o seu destino. Fomos criados para viver com Deus, e nisso consiste a felicidade maior e duradoira a que algum de nós pode aspirar: também a nós Deus convida a ser semelhantes à Virgem, Senhora da Assunção. Como ela e com ela, no final da nossa vida terrena, partilharemos plenamente a vida de Cristo.

2. Olhando para a Virgem Maria, podemos, assim, encontrar o rumo do nosso viver. Também em nós podemos esperar que Deus realize grandes coisas: trata-se, obviamente, de um caminho pessoal de identificação cada vez maior com Cristo; mas trata-se, também, de uma conversão do nosso viver comunitário.

Não é sem razão que a própria União Europeia se deu como bandeira as doze estrelas de ouro sobre o azul do céu, retomando o sinal mariano que acabámos de escutar no Apocalipse[1]. Com efeito, Santa Maria apresenta-nos o ideal, a meta não apenas de todo e qualquer ser humano, como também de toda e qualquer sociedade humana: participar plenamente da vida divina.

Olhando para a história da nossa Ilha, somos capazes de descobrir nela a consciência desta mesma meta: o homem divinizado em Cristo, elevado à glória de Deus, à imagem da Virgem Maria.

Quando, há 600 anos, os primeiros povoadores chegaram à Madeira, traziam consigo a consciência de iniciar algo de novo, um "Novo Mundo". Até então, a Madeira era uma terra sem qualquer sinal de mão humana. Significativa é, desde logo, a recusa de Zarco em povoar a Ilha com os homiziados e condenados que o Infante colocava à sua disposição. Significativos são os nomes dados aos primeiros nascidos na Madeira: Adão e Eva, filhos gémeos de Gonçalo Aires, "primeiro que naquele mundo novo povoava", diz Gaspar Frutuoso[2]. Será, aliás, este mesmo Adão Gonçalves Ferreira quem fará construir, anos depois, a ermida de Nossa Senhora da Encarnação, primeiro templo do que é hoje esta igreja de Nossa Senhora do Monte, cuja festa celebramos. Como é igualmente significativo o modo como Jerónimo Dias Leite se refere à fundação, no Funchal, da igreja de Nossa Senhora do Calhau, por Constança Rodrigues: "entendeu fazer uma igreja que fosse o princípio e o fundamento da vila do Funchal" (p. 46).

Com a consciência de viver um verdadeiro início ao começar o povoamento da nossa Ilha, devemos dizer que, ao longo dos séculos, também para toda a sociedade madeirense a Virgem Maria foi o modelo: modelo da devoção pessoal e modelo da própria sociedade no seu todo - ainda que, sabemo-lo bem, a sua concretização histórica não tenha sido isenta de erros, desvios e pecados que, no viver terreno, sempre marcam o agir humano. Nossa Senhora tem um lugar muito especial no coração dos madeirenses, como tem igualmente um lugar muito especial no seu viver comunitário e público.

Assumida plenamente por Cristo, a Virgem Maria não resume só a existência de cada um de nós; resume, também, o destino das diferentes comunidades humanas, e mostra como elas devem caminhar e converter-se numa identificação cada vez maior com Cristo ressuscitado: a família, os grupos de amigos, a economia e a política - enfim, todo o viver social.

Longe de nós, cristãos, querer impor o cristianismo a quantos não acreditam em Cristo. Mas longe de nós pensar que o cristianismo se resuma a uma mera atitude interior e secreta. O mandamento novo do amor até ao fim que Cristo nos ensinou e viveu, longe de violentar a consciência de quem quer que seja, promove antes a dignificação e a elevação de tudo quanto é verdadeiramente humano. Ele representa a máxima aspiração que qualquer ser humano pode conceber. É ele que queremos perceber e viver também na nossa vida pública.

Ao sairmos deste tempo de pandemia - que nos privou (e ainda priva) de não poucos momentos humanos e de tantas expressões públicas da fé -, não podemos deixar de olhar com esperança o horizonte que agora se começa a abrir diante de nós. É que, à nossa frente, ergue-se Santa Maria, o humano glorificado, a mulher e a discípula que partilha plenamente em Cristo da glória de Deus. E que nos diz qual o caminho a percorrer. E que nos diz que é possível percorrê-lo, como pessoas e como comunidade.

É este mesmo projecto que não deixará de nos conduzir na escolha daqueles que hão-de dirigir as nossas autarquias. Na liberdade e em consciência, havemos de escolher aqueles que pensamos serem os melhores para continuar a construir um modo de viver que se aproxime o mais possível da meta que nos propomos como comunidade madeirense.

Nestas próximas semanas, assistiremos à contraposição legítima de projectos e de pessoas que se apresentam com o objectivo de servir o interesse comum. Que seja uma campanha digna da sociedade madeirense que somos. E que Nossa Senhora do Monte a todos assista e acompanhe.

Como sucedeu com Nossa Senhora, também em nós (em cada um de nós e em todos) Deus quer fazer maravilhas. Por todos interceda e a todos a Senhora do Monte encha de suas bênçãos.

+ Nuno, Bispo do Funchal


[1] Cf. A. Rebelo, A Imaculada Conceição na bandeira da Europa, Estudos (IIIª série, 2004) 29-37.

[2] Cf. Gaspar Frutuoso, Saudades da terra, II, 178.