Homilia Dia de Fiéis Defuntos

02-11-2024
Foto de Duarte Gomes
Foto de Duarte Gomes

DIA DE FIÉIS DEFUNTOS
Cemitério de S. Martinho, 02 de novembro de 2024

"O meu Redentor está vivo"

1. Depois que nascemos, a morte surge como a realidade mais certa e segura, na vida de cada um e de todos. Parece que nascemos para morrer. Mesmo que tenhamos realizado feitos que permaneçam na memória de tantos — e, porventura, na história da nossa região ou do nosso país—; mesmo que aquilo que realizámos seja recordado após a nossa partida deste mundo, o facto é que todos nós nos havemos de enfrentar com esse momento definitivo, depois do qual tudo nos é desconhecido.

A incapacidade de vencer a morte — por muito que possamos prolongar a vida, com a ajuda da ciência e da técnica — parece que nos mostra a nós, seres humanos, como "seres para a morte", como seres falhados, nascidos para morrer. E, nesse sentido, o lugar em que nos encontramos recordar-nos-ia essa finitude, a incapacidade, a fraqueza de toda a humanidade.

No entanto, mesmo essa fraqueza e aparente derrota esconde em si um quê de contradição: a morte não seria para nós tão dolorosa não fosse a existência, em cada um e em todos, de uma enorme vontade de viver, de viver para sempre. E, por muito que o morrer possa parecer "natural", mesmo no coração de quem não acredita surge sempre um grito que clama por eternidade.

Também Job, como escutámos na Iª Leitura [Job 19, 1.23-27a], apesar de todas as derrotas e sofrimentos, apesar de se sentir abandonado por todos, mesmo pelo próprio Deus, clama: "Oxalá, fossem escritas minhas palavras! /Oxalá, numa tábua fossem gravadas / E com cinzel de ferro e chumbo / para sempre, numa rocha esculpidas". Job sente a injustiça de tudo quanto está a sofrer, e deseja que a sua inocência fique registada para sempre, em palavras gravadas para a eternidade, numa tábua ou, melhor ainda, numa rocha.

Esse é o desejo natural do ser humano: que algo de si, da sua vida, do seu contributo para o mundo, permaneça para além do passageiro e da própria morte. Fazemo-lo escrevendo livros, construindo uma família, empreendendo algo que perdure para além da finitude humana no tempo.

2. Mas Job, para além de manifestar este seu desejo de que algo de si e da sua inocência possa permanecer para sempre, reclama também por um "vingador", um "redentor".

O "redentor" constitui uma figura jurídica do mundo judaico de então: era um parente, um amigo, que assumia o direito (e o dever) de repor a memória do defunto, se fosse o caso, reivindicando a sua inocência, continuando a sua obra — repondo a sua memória.

Os diferentes estudiosos discutem muito como devemos entender esta figura a que Job faz apelo quando diz: "Mas eu sei: meu redentor vive! / E, no fim, sobre o pó, se erguerá! / Ainda que tenham cortado minha pele, / na minha carne eu verei a Deus. / Então, eu mesmo o verei! / Meus olhos poderão vê-lo, e não um estranho!" (Job 19,25-27).

No Antigo Testamento, Deus surge com bastante frequência como Redentor, como "vingador" do seu povo ou do profeta perseguido. Não é aqui o caso: neste momento, Job olha ainda para Deus como para um inimigo — no final do livro modificará este seu olhar injusto. Nem, tão-pouco, esta figura de "Redentor" pode ser entendida como referindo-se aos amigos de Job, tão desastradas tinham sido as suas falas e atitudes. Este Redentor não é, portanto, nem Deus, nem os amigos, nem os familiares, uma vez que todos tinham já morrido. No entanto, o "Redentor" é alguém próximo de Job, da sua humanidade e da sua rectidão: alguém entre Deus e o Homem, podemos nós concluir.

Sem conseguir mostrar totalmente quem será o seu "Redentor" — ainda estamos no Antigo Testamento! — o facto é que Job nos desenha nesta passagem a figura de Jesus, esse Deus feito Homem, que assume a nossa humanidade; que faz sua toda a nossa fragilidade — o verdadeiro "pontífice" (que faz a ponte) entre Deus e o Homem. Aliás, assim o entenderam os cristãos ao longo dos tempos. "Verdadeiro Deus e Verdadeiro Homem", diz a fé da Igreja que fazemos nossa.

3. Sim: Jesus é o nosso vingador diante da morte. O vingador, o Redentor, de Job e da humanidade de todos os tempos. Vingador de todos os inocentes que sofreram a morte. Vingador de todos os culpados que se viram enredados nas teias do pecado, incapazes de se libertarem delas. Porque Jesus ressurgiu vitorioso da morte, precisamente quando ela já cantava vitória, julgando ter derrotado a Deus ao vê-lo morto na cruz.

Na sua ressurreição, Jesus Cristo não apenas conquistou para si uma vitória: Ele destruiu o poder da morte, e ofereceu-nos a todos a possibilidade da Vida com Deus, que é a Vida Eterna! Rompendo os muros que nos separavam de Deus; ultrapassando as fronteiras impostas pela morte, Jesus Cristo oferece a toda a humanidade a graça de participar na sua vida divina.

O que nos faz cristãos é, precisamente, a entrega de tudo quanto somos e temos nas mãos de Jesus, para que Ele tudo faça seu e tudo ofereça ao Pai: tudo — o nosso pecado e a nossa virtude; as nossas tristezas e as nossas alegrias; as nossas derrotas e as nossas conquistas e vitórias. O que nos faz cristãos é a graça que nos é oferecida de podermos participar da sua Vida Eterna. Como nos prova a Virgem Santa Maria, no momento da sua Assunção ao Céu.

É por isso que as palavras do Senhor no evangelho ressoam, reconfortantes, ao nosso coração: "Vinde a Mim, todos os que andais cansados e oprimidos, e Eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de Mim, que sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e a minha carga é leve" (Mt 11,28-30).

Também nós, e connosco toda a Igreja, clamamos por um Redentor. Clamamos pelo Redentor, em cujas mãos entregamos a nossa vida e a vida do mundo inteiro. Entregamos-lhe todos aqueles que aqui se encontram sepultados. E queremos tomar o seu jugo redentor sobre nós, conscientes de que, ao contrário dos demais, esse jugo é suave e leve.

E hoje, aqui, neste aparente local de derrota da humanidade, queremos uma vez mais proclamar vitória sobre o nosso inimigo que é a morte. Se também aqui ela parece dominar a humanidade, tal como sucedeu no Calvário, também aqui ela é derrotada por Aquele que, morrendo na cruz, destruiu, para sempre, o seu poder e nos deu a partilhar a sua Vida Eterna.

+ Nuno, Bispo do Funchal