Homilia 74º Aniversário da Chegada dos Padres Salesianos
74º ANIVERSÁRIO DA CHEGADA DOS PADRES SALESIANOS
XXIX SEMANA DO TEMPO COMUM
Igreja de Nossa Senhora de Fátima, 25 de outubro de 2024
"Discernir o actual tempo da graça"
1. "Hipócritas! As aparências da terra e do céu sois capazes de discernir. O actual tempo de graça não sois capazes de discernir!" (Lc 12,56).
Esta afirmação do Senhor surge como lamento, mas também como acusação aos seus contemporâneos. Como qualquer ser humano e, em particular, como um ser humano que vive em ambiente de ruralidade, os seus contemporâneos sabiam perceber as estações, prever a chuva ou o sol, dos dias ou mesmo das horas seguintes. Sabemos, também nós, fazê-lo, ainda que (porventura) sem essa mestria — saber de experiência feito — fruto do convívio íntimo com a terra e os seus ritmos. E, se não sabemos realizar essa tarefa por nós, temos hoje ao nosso dispor a técnica e a ciência meteorológica, que o realizam com um elevadíssimo grau de segurança.
Contudo, estes mesmos que sabiam prever com exactidão o tempo do hoje e amanhã, não se mostraram capazes de discernir o tempo da graça. Precisamente: esse tempo que, por ser da graça; por ter sido preparado durante séculos; por ser aguardado com fé por todo o povo desde há muito, seria, à partida, mais fácil de entender. Até porque existiam abundantes sinais da chegada desse momento de graça: palavras e atitudes, toda a Pessoa de Jesus que ali se encontrava, perante eles, batendo à porta do coração de cada um e de todos, pedindo apenas que O acolhessem.
Mas há uma incapacidade dos corações: que tal incapacidade caracterizasse os pagãos, seria previsível; mas que caracterizasse também os membros do povo escolhido, nada o faria prever. Ressoa em nós o raciocínio de S. Paulo na Carta aos Romanos, resumido naquela afirmação: "Deus tudo encerrou na desobediência, para com todos usar de misericórdia" (Rom 11,32).
E, no entanto, era o tempo da graça, o "kairós", aquele que os ouvintes de Jesus viviam: o Messias estava a passar diante deles; era a oportunidade esperada, oferecida… Mas a sua desobediência, a sua distração foi maior.
2. Quando S. João Bosco, aos 9 anos de idade, teve a visão de Jesus e de Maria que transformavam uma turba violenta de rapazes num grupo de "cordeiros brincalhões", sem compreender o que tal sonho significasse, Nossa Senhora tranquilizou-o, dizendo: "A seu tempo compreenderás" (D. AGASSO, Dom Bosco, 2014,11). Como não perceber neste "a seu tempo" de Maria o "tempo da graça"? Sim: também S. João Bosco teve a necessidade de perceber os "sinais dos tempos". Ou, dito de outro modo, os "tempos da graça", os "kairoi" que Deus nos oferece.
Foi o que sucedeu de facto, anos depois, no dia 8 de Dezembro de 1841, quando, na Igreja de S. Francisco de Assis, Dom Bosco se encontrou com um rapaz (um dos muitos que então abundavam em Turim) — inicialmente "pobre, analfabeto e desconfiado", mas que, quatro dias depois, regressou acompanhado por mais 8. Assim teve início a obra salesiana.
Estava, então, o norte italiano em efervescente revolução industrial e política. E Turim era o centro do furacão. Importava ajudar os jovens a tomar consciência dos perigos que corriam, e proporcionar-lhes uma reabilitação imediata. Dom Bosco deu-se conta de que razão, religião e bondade transformam mais que a repressão educativa. Ou seja: Dom Bosco foi capaz de realizar uma clara leitura dos sinais dos tempos — uma compreensão dos apelos que Deus lhe fazia e do caminho a percorrer para lhes encontrar uma resposta.
E, não tenho dúvidas, foi também a percepção dos "sinais dos tempos" o que, finalmente, sucedeu com a vinda da Congregação Salesiana para o Funchal. Já em 1896 os salesianos tinham sido convidados por D. Manuel Agostinho Barreto; em 1925, foram-no, de novo, pelo Pe. Laurindo, com o apoio de D. António Pereira Ribeiro. Finalmente, há 74 anos, em 1950, desembarcaram no Funchal os primeiros membros da Congregação Salesiana, para assumir a direcção da Escola de Artes e Ofícios.
3. Perceber os sinais dos tempos — quer dizer: darmo-nos conta daqueles momentos únicos em que a graça de Deus passa por nós e nos convida a aceitá-la e a deixar que o Evangelho entre no nosso coração, na nossa vida, e dê frutos, abundantes frutos de vida eterna — essa é, de facto, a nossa vocação.
Vocação de todos os cristãos, e vocação de todos os seres humanos. Perceber os sinais de Deus que se encontram à nossa volta. A isso nos convidava também — recordemo-lo! — o Concílio Vaticano II, de um modo muito claro: "O Povo de Deus, movido pela fé com que acredita ser conduzido pelo Espírito do Senhor, o qual enche o universo, esforça-se por discernir nos acontecimentos, nas exigências e aspirações, em que participa juntamente com os homens de hoje, quais são os verdadeiros sinais da presença ou da vontade de Deus. Porque a fé ilumina todas as coisas com uma luz nova, e faz conhecer o desígnio divino acerca da vocação integral do homem e, dessa forma, orienta o espírito para soluções plenamente humanas" (Gaudium et Spes, 11).
Peçamos a S. João Bosco a graça de nos ajudar a todos a discernir esses sinais, estejam eles ao nosso lado, na comunidade eclesial ou fora dela, ou provenham de realidades que lhe são distantes. A discernir e a responder-lhes com ousadia e coragem. Peçamo-lo, de um modo particular, para a Congregação Salesiana e para a Comunidade que, aqui na nossa cidade, continua a tarefa educativa, em novos moldes, mas sempre segundo o espírito de Dom Bosco.
+ Nuno, Bispo do Funchal