Fiéis Defuntos
FIÉIS DEFUNTOS
2 de novembro de 2022
Cemitério de S. Martinho
Leituras: 1ª Missa
As leituras que acabámos de escutar são todas elas marcadas pela certeza da vida eterna: "Eu sei que o meu Redentor está vivo, e no último dia se levantará sobre a terra", dizia Job (Job 19,25); e S. Paulo afirmava: "Como sabemos, irmãos, Aquele que ressuscitou o Senhor Jesus também nos há-de ressuscitar com Jesus e nos levará convosco para junto d'Ele" (2Cor 4,14).
De onde surge esta certeza, esta sabedoria que permite afirmar a vida eterna?
1. Ela surge, certamente, e em primeiro lugar, do facto de apenas no horizonte da vida eterna o mundo presente, tal como o vemos e tal como o vivemos, fazer sentido: de que serviria trabalhar, de que serviria lutar, de que serviria a própria arte, de que serviria procurar construir um mundo melhor, se não fosse possível viver para sempre, se tudo fosse passageiro e terminasse no silêncio putrefacto de um túmulo? A esperança - que é o grande motor da vida humana - traz consigo um grito de eternidade. A vida humana exige, por si mesma, a eternidade!
2. Mas quando alguém encontra Deus - melhor: quando alguém se deixa encontrar por Deus (porque Ele anda à nossa procura!) - diante de si abrem-se novos horizontes: os horizontes infinitos da eternidade.
O grito de Job perante a injustiça que lhe estava a ser feita (a injustiça do "normal acontecer da vida" - aquela de, sem qualquer culpa da sua parte, se ver mergulhado no sofrimento, sem ninguém que o defendesse ou pudesse oferecer qualquer esperança), o grito de Job não é apenas o grito do injustiçado, do inocente sofredor.
É também o grito do crente que se vê imerso na incompreensão; que se vê rodeado de quantos usam Deus para os seus fins, mas que recusam um confronto sério e aberto (um encontro) com o Senhor.
Precisamente: porque se deixou encontrar por Deus, Job pode gritar a sua certeza: podem as riquezas desaparecer; podem os parentes ser vítimas da morte; pode ele próprio ver-se rejeitado e sujeito à doença, que de uma coisa ele tem a certeza: o Deus vivo é o seu defensor, não apenas perante as injustiças dos homens como também diante dos males naturais do mundo - Deus é o seu defensor final, Aquele que detém a última palavra sobre o acontecer, e que não deixará de fazer justiça.
Quando alguém se deixa encontrar por Deus, esse encontro faz brotar a certeza íntima da vitória última da vida. Mesmo rodeado pela morte; mesmo rodeado pelos supostos amigos que lhe querem impor que pense como todos e que se renda às garras do que julgam ser inevitável, Job grita a certeza de que a vida de Deus é a realidade última e definitiva; grita a certeza de que Deus é o seu advogado defensor; o vingador daquele que sofre injustamente: "O meu defensor está vivo [...]. Na minha pele estarei de pé. Na minha carne verei a Deus".
3. O Apóstolo S. Paulo ia, no entanto, mais longe: "Aquele que ressuscitou o Senhor Jesus também nos há-de ressuscitar com Jesus e nos levará convosco para junto d'Ele".
A certeza do Apóstolo não surgia apenas da consideração da natureza humana, nem da convicção de quem se deixou encontrar por Deus. Surgia de um acontecimento histórico, que dá sentido a toda a história, a todo o existir humano: Jesus venceu a morte, ressuscitou.
Paulo não presenciou a morte e a sepultura de Jesus - e, assim, também não fazia parte do grupo dos Doze a quem o Ressuscitado apareceu na manhã de Páscoa. Mas, por graça do Senhor ressuscitado, também Paulo O encontrou no caminho de Damasco.
Nessa altura, Paulo, mergulhado no ódio de perseguição aos discípulos de Jesus, com que julgava defender a Deus; Paulo, mergulhado e perdido na morte (aquela morte que nos mata em vida), encontrou o vencedor da morte. E esse encontro não foi, também ele, um sonho, uma ideia ou imaginação; nem sequer Paulo o tinha desejado, esperado. Esse encontro foi algo que aconteceu no seu existir, acontecimento histórico na sua história pessoal e no existir do mundo, e que modificou radicalmente a sua vida: de perseguidor, Paulo passou a perseguido; de judeu fiel e cumpridor da Lei, passou à liberdade da vida cristã. O acontecimento histórico do encontro com Jesus no caminho de Damasco transformou-o profundamente: nesse momento, Paulo foi confrontado com a vida eterna e gloriosa daquele Jesus, anteriormente morto e sepultado, mas que agora resplandecida de vida, da vida de Deus.
É por isso que o Apóstolo pode escrever aos cristãos de Corinto, procurando abrir-lhes - também a eles - um novo horizonte, um horizonte de vida eterna. Aos coríntios, Paulo convida-os a não olharem apenas para o hoje, para o aqui e agora, para as aparências (aquilo que aparece e que os olhos da carne vêem). Paulo convida-os a ver toda a realidade com outros olhos (com os olhos da ressurreição de Jesus e que o Espírito Santo permite), a ver mais longe.
No que agora aparece, vemos o envelhecimento do nosso corpo, a diminuição das suas capacidades; mas, com a visão dada pelo encontro com o Ressuscitado, o homem interior vê-se renovado de dia para dia, graças à fé. Agora, vemos a aflição do momento; olhando mais longe, com os olhos da fé, vemos "o peso eterno de glória", a vida com Deus. Agora, vemos o que é passageiro; com os olhos do Ressuscitado, vemos o que é eterno, o que permanece. Agora, o corpo, que é a nossa morada terrestre, é desfeito; com os olhos do Ressuscitado, vemos surgir nos Céus uma habitação eterna, construída por Deus e não pelos homens.
4. Tal como Paulo e como os cristãos de Corinto, também nós somos convidados a este percurso, a esta passagem. Somos convidados a ver mais longe e mais profundamente. O acontecimento histórico da ressurreição de Jesus a isso convida. Porque também nós encontrámos um dia o Ressuscitado, não já no caminho da Damasco, mas no existir da nossa vida, na palavra divina e na própria Eucaristia.
Somos, também nós, convidados a ver para além do envelhecimento exterior; somos convidados a considerar não apenas o momento mas a eternidade de Deus; somos conduzidos por Cristo ressuscitado - presente na nossa vida e na vida de tantos e tantos cristãos que disso dão testemunho, na Igreja e nos sacramentos - somos conduzidos a deixar aquilo que passa para vivermos focados no eterno de Deus; somos despertos para aquela habitação eterna que o próprio Senhor constrói para cada um de nós e para todos.
Os que se consideram a si próprios sábios e inteligentes, poderão dizer que nada disso é demonstrado pela ciência; que tudo morre e termina sem sentido; e que Job se deve, afinal, resignar à sua má sorte. Já assim o fizeram aqueles que no livro aparecem como supostos "amigos", e que não passam de insensatos.
Com Job, com o Apóstolo S. Paulo, com Jesus ressuscitado, com os cristãos do mundo inteiro e de todos os tempos, nós, ao contrário, não nos resignamos a essa sorte infeliz.
Porque, com a Igreja, com os Apóstolos e os santos de todos os tempos, nós - cada um de nós e todos - sabemos que o nosso Redentor está vivo, e que, no final, se levantará sobre a terra, Senhor da vida, vencedor da morte e do pecado.