Dia da Região 2023

01-07-2023

DIA DA REGIÃO

XIII DOMINGO DO TEMPO COMUM (A)

Catedral do Funchal, 1 de Julho de 2023


1. Conta a tradição que o primeiro homem nascido na Madeira recebeu o nome de Adão: Adão Gonçalves Ferreira. E que sua irmã recebeu o nome de Eva (Eva Gomes Ferreira). Seu pai, Gonçalo Aires Ferreira, era homem de confiança de João Gonçalves Zarco.

Este facto revela bem como os primeiros colonos se entendiam a si mesmos: tinha-lhes sido confiado por Deus um pedaço do Paraíso terrestre, para que o cultivassem e fizessem dar fruto — mas, também, para que dessem origem a um novo modo de viver. Estavam a começar algo de novo, numa terra virgem, que mais ninguém tinha moldado e transformado, no meio de um mar imenso e (ainda) adverso.

Para eles, talvez fosse apenas a consciência de inaugurar uma vida nova nestas novas paragens oceânicas. Não tinham, de certeza, a noção daquilo que esta primeira colonização oceânica significaria para a história universal: o início de uma nova época cultural, o início dum mundo tão diferente daquele em que anteriormente viviam! Com efeito, se é certo que não foi apenas o "achamento" destas novas paragens que marcou o princípio do Renascimento, aquele é um dos seus factores e o espelho do que significa o século XV europeu.

Certamente o Adão e a Eva madeirenses não tinham a consciência alargada das consequências do que estavam a viver: essas, apenas a distância da história permite. Mas tinham, de certeza, a percepção de o fazer em nome de Deus: a Ilha tinha-lhes sido confiada pelo Criador como outrora o Paraíso fora confiado a Adão e a Eva. Vinham de um mundo velho, mas era-lhes oferecida a possibilidade de um recomeço radicalmente novo. Algo de novo estava a surgir, não apenas diante dos seus olhos mas com eles, por meio deles.

E quando a labuta do quotidiano e os desastres naturais pareciam contradizer essa inicial noção paradisíaca, nunca desistiram os nossos antepassados de recomeçar, uma e outra vez: o Deus que lhes tinha entregue esta Ilha é o mesmo que permite o recomeço, uma e outra vez — sempre que necessário! — e, sobretudo, o Deus que sempre aponta novos horizontes de existência. O quotidiano madeirense teria sido impossível sem esse outro horizonte que apenas a fé, verdadeira fonte de vida nova, pode oferecer.

2. A vida nova: eis o que cada ser humano sempre procura — porque fatigado do trabalho, do ritmo intenso do viver, da repetição vã de tentativas para recomeçar, ou até porque insatisfeito com o bem-estar que já conseguiu. Somos eternos insatisfeitos, nós, os seres humanos: o mundo em que vivemos e que construímos é claramente pouco e pequeno para o infinito que explode no nosso coração.

É essa vida nova que nos encontra quando Deus nos surge ao caminho — quando percebemos a Sua presença ao nosso lado, quando somos confrontados com qualquer realidade onde a marca divina se nos manifesta e nos interroga — ou até nos envolve.

Foi essa, certamente, a percepção daquela mulher da Iª Leitura que, acolhendo o Profeta em sua casa, se viu presenteada com um filho — ela que era estéril e cujo marido tinha já idade avançada.

Mas essa vida nova, verdadeira e radical, não consiste numa vida simplesmente diferente, ainda que o "diferente" signifique uma mudança de cultura, uma nova época na história da humanidade. Disso, se deram conta bem depressa os que a esta Ilha vinham com o entusiasmo da novidade: encontravam apenas o diferente, não fosse a fé cristã, vivida em cada momento, oferecer-lhes a possibilidade de ir mais longe.

Na IIª leitura, S. Paulo convidava-nos a reconhecer isso mesmo: convidava-nos a reconhecer, nos que são baptizados, o gérmen duma verdadeira vida nova, de que as mudanças mais ou menos profundas são apenas o prenúncio. De facto, é a vida nova que recebemos no Baptismo: "Fomos sepultados com Cristo pelo Baptismo na sua morte, para que, assim como Cristo ressuscitou dos mortos, pela glória do Pai, também nós vivamos uma vida nova" — assim dizia o Apóstolo.

Esta vida nova não consiste tanto em projectos e ideias diferentes (pessoais ou colectivos), mas na nossa relação com Jesus de Nazaré, no "encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo" — dizia o Papa Bento XVI, citado com frequência pelo Papa Francisco (DCE 1). É o encontro com Jesus Cristo que conduz a uma identificação cada vez maior com Ele, até à cruz — até ao desapossamento de nós mesmos para que Cristo possa ser tudo em nós: "Quem ama o pai ou a mãe mais do que a Mim, não é digno de Mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a Mim, não é digno de Mim. Quem não toma a sua cruz para Me seguir, não é digno de Mim", escutávamos no evangelho.

A vida nova é uma Pessoa, um homem que venceu a morte, que dá a todos a possibilidade de partilhar da sua vida divina. Não tenhamos medo de, por meio dela, passarmos a olhar e a viver dum modo novo, ainda que mais exigente: o modo daquele que segue radicalmente a Jesus.

3. Ao longo destes 600 anos, os madeirenses têm feito tesouro da herança recebida dos seus antepassados: têm cuidado das obras de arte, das construções, dos usos e costumes que animaram aquele "modo diferente" de viver. Mas temos igualmente vivido a fé, essa vida nova — vivida com fervor, a animar e transformar o quotidiano, oferecendo-lhe o horizonte e o sentido definitivo. O testemunho da fé oferecido pelos madeirenses é reconhecido e admirado no mundo inteiro.

Encontramos madeirenses nas mais diversas partes do mundo. A diáspora faz parte do ser madeirense. Temos este impulso para sair, para ir até outras paragens. Talvez porque aqui, na Ilha, tudo pareça ser demasiado pequeno para realizar o sonho de infinito que nos habita. Ou, talvez, porque fomos esmorecendo na vida fé — a única realidade que nos permite olhar para o verdadeiro infinito, que nos dá o verdadeiro e definitivo horizonte que sacia a nossa sede de infinito.

Não se trata — longe disso — de considerar a emigração que (compreensivamente) caracteriza a vida madeirense, como uma realidade negativa. Trata-se antes de aceitarmos o convite que Jesus Cristo nos faz a todos, de olharmos a vida com este novo e infinito horizonte que apenas Ele nos pode oferecer, mesmo continuando a viver aqui na Ilha. Saibamos nós aceitar o desafio da fé, em qualquer lugar em que nos encontremos.

+ Nuno, Bispo do Funchal