Dia da Região 2022

01-07-2022

DIA DA REGIÃO

Catedral do Funchal, 1 de Julho 2022


Leituras (Sexta-feira da XIII Semana, Pares)

Am 8,4-6.9-12

Sl 118 (119) 2.10.20.30.40.131

Mt 9,9-13


1. As palavras do Profeta Amós que escutámos como Iª Leitura - texto que o Calendário litúrgico prevê para esta Sexta-feira - soam como aviso dramático aos nossos ouvidos e ao nosso coração.

Amós é um homem do século VIII a.C. (783-743). Não era "profeta de profissão" nem filho de profeta, como ele próprio afirma a dado momento (7,14). Era filho de pastores e cultivador de sicómoros. Foi o Senhor quem o chamou e o enviou para, em Seu nome, falar a Israel. Vivia-se, então um tempo de riqueza e prosperidade. Confrontados com as palavras duras que Amós pronunciava, não espanta que alguns dos seus concidadãos o tivessem mandado calar.

O profeta começava por denunciar o modo como a riqueza de tantos tinha sido construída ("Espezinhais o pobre e quereis eliminar o humilde [...]. Faremos a medida mais pequena, aumentaremos o preço, arranjaremos balanças falsas. Compraremos os necessitados por dinheiro e os indigentes por um par de sandálias"). Mas, depois, trazia também o anúncio de uma possibilidade dramática: a continuar deste modo, ignorando Deus e a justiça, em breve surgiria a fome, enviada pelo próprio Senhor ("Mandarei a fome sobre a terra: não será fome de pão, nem sede de água, mas fome de ouvir a palavra do Senhor. Irão cambaleando de um ao outro mar, irão sem rumo do Norte até ao Oriente à procura da palavra do Senhor, mas não a poderão encontrar"). Que o mesmo é dizer: ignorado pelos homens uma e outra vez, Deus cala-se - e o silêncio de Deus é bem mais aterrador que as suas palavras ou as consequências dos actos culpados dos homens.

2. A palavra de Deus é sempre pronunciada num contexto histórico concreto. Mas, porque é palavra de Deus, ela atravessa a história e torna-se palavra que ilumina a vida de todo aquele que a encontra, nisso se distinguindo das palavras humanas. Quer dizer: a palavra de Deus constitui sempre uma oportunidade para examinarmos a nossa existência, deixando que as nossas sombras sejam iluminadas e vencidas pela sua luz. Por isso, cada um de nós não deixará de se confrontar com ela. Mas que poderá esta palavra dizer à nossa Região, neste dia em que celebra a sua existência e a sua identidade?

O trecho de Amós, diz-nos, em primeiro lugar, que nem tudo é lícito para criar riqueza. A riqueza não é (não pode ser) uma finalidade em si mesma - e, para a obter, não vale tudo. A riqueza, a acumulação de bens materiais, tem um objectivo: ajudar todos a crescer em humanidade.

É por isso que a Doutrina Social da Igreja não hesita em afirmar: "O desenvolvimento não pode ser reduzido a um mero processo de acumulação de bens e serviços" (CDSI 334). E também: a moralidade da vida económica "constitui um factor de eficiência social da própria economia" (CDSI 332).

Ou seja: uma economia inspirada pela justiça e pela solidariedade é essencial para que uma sociedade se possa dizer justa e desenvolvida, coesa, eficiente, capaz de caminhar em segurança para patamares sempre mais elevados de humanidade.

Ao contrário, o egoísmo e a injustiça poderão dar origem a altos resultados económicos, mas a sociedade que daí deriva permanecerá minada nas suas bases - e, por isso, tais resultados serão sempre frágeis e incapazes de construir uma sociedade coesa e segura. Dão antes origem às "estruturas de pecado" - quer dizer: a condicionamentos e obstáculos ao desenvolvimento da pessoa humana, que quase obrigam à prática do mal (CDSI 119).

Dito ainda de outro modo: não podemos afirmar que vivemos numa Região verdadeiramente desenvolvida apenas porque nela existem alguns que detêm uma riqueza abundante. Teremos uma Região verdadeiramente desenvolvida, uma sociedade coesa, quando todos tiverem a oportunidade de aceder ao necessário para viver dignamente como seres humanos. Uma sociedade não é desenvolvida quando tem ricos; uma sociedade é desenvolvida quando não tem pobres. Ou seja: quando a riqueza de uns não é construída à custa da pobreza de outros, antes se encontra ao serviço do bem comum (CDSI 334).

3. Mas Amós ia mais longe: o Profeta não hesitava também em alertar para uma consequência directa do desprezo de Deus e da vida justa e atenta ao bem comum: se continuais sem escutar Deus - dizia ele - há-de chegar o dia em que O haveis de procurar e só encontrareis silêncio. Agora, podeis possuir muitos bens; viver em abundância; não saber o que fazer com o que tendes. Mas, um dia, tereis fome e sede - não de pão ou de água, mas da palavra de Deus. E não a encontrareis. Andareis à sua procura por todos os lados; haveis de percorrer caminhos longos; mas haveis de vos deparar com um enorme silêncio.

Não é esgotamento divino, nem vingança mesquinha de Deus. É, simplesmente, o fruto de uma incapacidade humana cultivada, querida, multiplicada. Quando o ser humano deixa de escutar Deus; quando isso se torna a atitude não apenas de um ou de alguns indivíduos, mas assume a forma de atitude generalizada, podemos de facto perder o sentido de Deus.

Sucede assim com os sentidos humanos: habituados à escuridão durante longos períodos, tornamo-nos incapazes de viver na luz; habituados ao ruído ensurdecedor, tornamo-nos incapazes de viver o silêncio e, com ele, de distinguir e apreciar a música harmoniosa. Desabituados de viver no horizonte de Deus, esquecendo-nos dele, perdemos também a sua luz e, com ela, o próprio horizonte do eterno e do humano.

Isso mesmo reconheceu há anos o filósofo russo Aleksandr Solzhenitsyn ao receber o Prémio Templeton: "Mais de meio século atrás, quando eu ainda era uma criança, lembro-me de ouvir um número de pessoas mais velhas oferecerem a seguinte explicação para os grandes desastres que se abateram sobre a Rússia: 'Os homens esqueceram-se de Deus; é por isso que tudo isto aconteceu'. Desde então, tenho passado quase 50 anos estudando a história da nossa revolução. Durante esse processo, li centenas de livros, colecionei centenas de testemunhos pessoais e contribuí com oito volumes de minha própria lavra para o esforço de transpor o entulho deixado por aquele levante. Mas se hoje me pedissem para formular da maneira mais concisa possível a causa principal da perniciosa revolução que deu cabo de mais de 60 milhões de compatriotas, não poderia fazê-lo de modo mais preciso do que repetir: Os homens esqueceram-se de Deus; é por isso que tudo isso aconteceu".

"Os homens esqueceram-se de Deus". Extasiados pelas suas conquistas e capacidades, deixaram de viver por referência a Deus. Passaram a viver como massa anónima; passaram a ser mais uma peça da engrenagem; um número anónimo; deixaram que o Estado ditasse o que deviam pensar, como deviam viver. Quando lhes chegou a fome de sentido para a vida; quando lhes chegou a sede duma existência plena e humana, já não foram capazes de encontrar o alimento que procuravam.

4. De há vários anos a esta parte, a nossa Região tem claramente realizado um caminho de desenvolvimento. As condições materiais de vida do nosso povo são decisivamente melhores. E, no entanto, importa sempre que nos deixemos interrogar pelo Profeta: interrogar acerca da qualidade desse desenvolvimento e da coesão social efectiva que ele faz ou não gerar. E que nos deixemos igualmente interrogar acerca do espaço que damos a Deus - não apenas na vida de cada um mas também na nossa existência como sociedade. Não nos basta ter a Cruz de Cristo na bandeira.

Que cada madeirense seja sempre - para si e para os outros - um sinal, uma presença que a todos recorda a importância e o lugar de Deus, a sua centralidade na vida de cada ser humano e de toda a sociedade.

+ Nuno, Bispo do Funchal