Corpo de Deus 2023
SANTÍSSIMO CORPO E SANGUE DO SENHOR (A)
Largo do Município, 8 de Junho de 2023
1. "Como pode Ele dar-nos a Sua Carne a comer?". A afirmação de Jesus que convidava a "comer a Carne do Filho do Homem" escandalizou os judeus do seu tempo. Escandalizou mesmo os discípulos. E continua a escandalizar muitos, mesmo cristãos. Por isso, olham para a Eucaristia como um símbolo, como algo que nos faz vagamente recordar Jesus; que nos faz recordar a Última Ceia e que continua hoje a reunir e a unir a comunidade: uma refeição religiosa, mas pouco diferente de todas as outras — "Faz-me sentir bem", escutamos tantas vezes…
E, no entanto, todo este escândalo — que os evangelhos não hesitam em apresentar — demonstra que a intenção de Jesus ao instituir a Eucaristia ultrapassava o simbólico, para ousar atingir "o real". Se assim não fosse, se a intenção de Jesus fosse apenas instituir mais um ritual, não teria escandalizado ninguém: o povo judeu conhecia bem as refeições pascais que reuniam a família num memorial da saída do Egipto e da entrada na Terra da Promessa.
"Se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu Sangue, não tereis a vida em vós. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna; e Eu o ressuscitarei no último dia". Estas palavras, juntamente com aquelas outras da Última Ceia: "Isto é o Meu Corpo… Isto é o Meu Sangue. Fazei-o em memória de Mim", tornam-se, por isso, luminosas. Elas oferecem verdadeira luz, indicando o lugar, a fonte onde os cristãos, desde o primeiro instante, encontraram o Senhor, a sua Presença após a ascensão ao Céu. E não devem (não podem) ser olhadas apenas como acenando a uma distante presença na memória ou no coração dos discípulos. Na Eucaristia, Jesus encontra-se presente. É um hoje, um aqui e agora. É, de verdade, o Seu Corpo que comungamos.
2. De facto, depois da ressurreição e ascensão aos céus do Senhor, nunca os cristãos se sentiram abandonados, órfãos, sem a presença de Jesus. Pelo contrário: a presença eucarística do Ressuscitado preenchia toda a sua vida — transformava-a, dava-lhe sentido, enchia-a de forças que permitiam a conversão, a mudança radical de vida e, em consequência, a transformação de tudo o que se encontrava ao seu redor, chegando a mudar radicalmente os modos de pensar e de ser, o modo de viver da sociedade. A Eucaristia dava-lhes forças que permitiam enfrentar o martírio.
A Eucaristia e a Presença de Jesus que os cristãos experimentavam na sua celebração, permitiam que Deus fizesse parte do quotidiano e o mudasse dum modo radical, oferecendo a todos um novo e infinito horizonte de vida: aos escravos, permitia-lhes gozar a liberdade verdadeira; aos pobres, permitia-lhes erguer a cabeça diante das dificuldades e sofrimentos; aos ricos, convidava-os a repartir o que tinham; aos senhores, levava-os a respeitar os servos, a tratá-los como irmãos; aos servos convidava-os a viver o serviço com os mesmos sentimentos de Jesus; aos filósofos, convidava-os a pensar como Jesus (o Logos feito carne) é a chave, a lógica de todo o universo; aos governantes levava-os a pensar primeiro no bem comum, e só depois nos interesses próprios… a todos mostrava que é possível viver com novos critérios e ousar a civilização do amor.
A celebração da Eucaristia constituiu, por isso, uma verdadeira revolução — uma revolução realizada não a partir das forças humanas e da capacidade de mobilização dum líder, como sucedeu com Spartacus (o escravo que se revoltou contra o Império e que logo foi derrotado), mas uma revolução realizada a partir de dentro, de Deus, da Sua força e da Sua graça.
Uma revolução que, por isso, permanece vitoriosa. Uma revolução que efectivamente transformou, dum modo radical, as estruturas dum mundo velho e caduco, como era o Império Romano, dando origem a uma nova cultura, mais humana e mais divina, mesmo que (como todos sabemos) não isenta de pecados e de fragilidades. Tratava-se de viver conscientes de uma Presença divina, ao nosso lado e em nós — Presença que, colocando a claro (denunciando) o pecado humano, se tornava o princípio dum mundo novo: Deus connosco e em nós, "esperança de glória" (Col 1,27).
A Presença eucarística de Jesus; a possibilidade de estar com Ele, de O vermos e escutarmos; a graça de Ele mesmo nos tocar e transformar; de nos curar (hoje tal como sucedeu outrora nos caminhos da Galileia) é, de verdade, a mola transformadora do mundo — do nosso mundo interior, espiritual, e do mundo exterior em que vivemos, trabalhamos, existimos. Ao contrário, o esquecimento dessa Presença tem originado perdas incontáveis, retrocessos, não só na vida da fé mas também na civilização, na humanidade com que somos capazes de viver.
3. Estamos habituados a que o mundo gire à volta do dinheiro, do poder ou do prazer. É assim o modo de viver do nosso tempo, que há muito abandonou a consciência de viver na Presença de Deus. Precisamos de um mundo novo que viva à volta da Presença de Deus.
É por isso que precisamos hoje daquilo a que poderíamos chamar "uma verdadeira revolução eucarística". Precisamos — cada um de nós e todos como sociedade — de nos deixarmos tocar e transformar por este Jesus que passa pelas ruas da nossa cidade.
Precisamos de deixar que Ele nos alimente com a sua Vida, porque estamos demasiado envolvidos por uma cultura da morte. Precisamos de deixar que a Presença do Senhor na Eucaristia nos cure do nosso egoísmo, para sermos capazes de olhar em primeiro lugar para o outro e para as suas necessidades — sabendo que nenhum de nós será feliz, será capaz de chegar à vida verdadeira, sem tornar felizes aqueles que se encontram ao seu lado. Precisamos de deixar que a Presença de Jesus na Eucaristia nos faça olhar mais longe, libertando-nos do ritmo infernal do dia-a-dia, mostrando-nos que a vida humana não se limita a este pedaço de tempo mais ou menos curto em que habitamos este mundo, mas é, antes, uma vida para sempre — e que a Vida Eterna apenas a encontramos com Deus e em Deus. Precisamos que a Presença de Jesus na Eucaristia nos ajude a respeitar melhor o mundo por Ele criado, e colocado à nossa disposição a fim de crescermos interior e exteriormente no Seu louvor, mostrando e proclamando as Suas maravilhas. Precisamos que a Presença de Jesus na Eucaristia nos torne mais unidos uns aos outros, partilhando e vivendo a fé como irmãos. Precisamos que a Presença de Jesus na Eucaristia nos faça mais Seus e nos ajude a rezar, cada vez mais intensa e duradoiramente, e a perdoar a todos quantos nos ofenderam.
No final desta celebração, levaremos Jesus, realmente presente na Eucaristia, pelas ruas da nossa cidade do Funchal. Peçamos-Lhe perdão por tantas vezes O ignorarmos e ofendermos. Por vivermos como se Ele não existisse ou não estivesse presente na nossa vida. Mas peçamos-Lhe, sobretudo, para as nossas Ilhas e para todo o nosso país, a graça de nos deixarmos envolver e transformar segundo a Sua vontade. E peçamos-Lhe, também, a força para contribuirmos para o bem daqueles que estão à nossa volta e para o bem de toda a nossa Região.
+ Nuno, Bispo do Funchal