Aniversário do Hospital Dr. Nélio Mendonça

11-09-2023

50º ANIVERSÁRIO HOSPITAL NÉLIO MENDONÇA

09 de setembro de 2023


"Como não há médicos no país, os doentes são transportados para a praça pública, e os transeuntes acercam-se deles. Os que já tiveram a mesma doença ou conheceram alguém que a tivesse, acodem ao enfermo com os seus conselhos, exortando-o a fazer o que eles próprios fizeram ou viram fazer a outros para se curar. Não é permitido passar perto de um doente sem inquirir do seu mal" (HERÓDOTO, História, I, CXCVII).

O texto é da autoria do grego Heródoto, e foi escrito no século V a. C. O primeiro historiador da nossa civilização referia-se elogiosamente à cultura babilónica do seu tempo, sublinhando o cuidado de todos com os doentes. Mesmo que, na Grécia, alguns templos acolhessem e tratassem os sofredores, este era o modo mais elogioso que Heródoto conseguia encontrar para falar do cuidado dos doentes: todos eram médicos de todos.

Escutemos, ainda, um outro texto — a todos os níveis bem distante do primeiro: "Qualquer cidade possui quatro hospitais, situados em volta da cidade, um pouco fora das muralhas e suficientemente grandes para serem como pequenas cidades. Há duas razões para que os hospitais sejam grandes: primeiro, os doentes, por mais numerosos que sejam, não se sentem apertados nem incomodados; segundo, os doentes contagiosos podem ficar isolados do contacto com outros doentes, o que evita a propagação das moléstias. Esses hospitais são muito bem organizados e providos de tudo que é necessário aos doentes, que aí são tratados com delicadeza e diligência, e os melhores médicos visitam-nos continuamente. Em consequência, quando alguém adoece não vai para o hospital contra a vontade, e não há, na cidade, quem não prefira ser hospitalizado a ser tratado em casa" (THOMAS MORE, Utopia, Brasilia, 2004, 64-65).

Estamos, como é óbvio, no pólo oposto à primeira narração de Heródoto. Estamos no início do séc. XVI (com mais de mil anos de distância). O seu autor é S. Thomas More. O texto integra a célebre "Utopia" — essa descrição duma cidade sumamente humana, para onde queremos dirigir a civilização. Não é, portanto, a narração de qualquer realidade existente, mas a passagem para escrito do que deveria ser um mundo perfeito já nesta terra.

Entre o primeiro texto — que, apesar de tudo, evidenciava e louvava o cuidado de todos para com todos os doentes (recusando que fossem simplesmente abandonados ao seu destino, como sucede com os animais) — e a utopia do segundo excerto, encontramos um caminho bem longo.

Desse caminho é testemunha uma outra narração, escrita no ano 400 da nossa era, em Belém (na Palestina). Nela, S. Jerónimo narra a atitude de Fabíola, uma viúva romana que se tinha convertido ao cristianismo. Diz S. Jerónimo:

"Em vez de retomar a sua antiga vida, [Fabíola] separou-se dela e vendeu tudo o que era sua propriedade (grande e adequada à sua posição). Transformando-a em dinheiro, entregou-a em benefício dos pobres. Foi a primeira pessoa a fundar um hospital para reunir os sofredores das ruas, e onde poderia cuidar das infelizes vítimas da doença e da necessidade. Preciso agora de contar as diversas doenças dos seres humanos? Preciso de falar de narizes cortados, olhos arrancados, pés meio queimados, mãos cobertas de feridas? Ou de membros hidrópicos e atrofiados? Ou de carne doente, cheia de vermes? Muitas vezes ela carregava aos ombros pessoas infectadas com icterícia ou sujeira. […] Dava comida aos seus pacientes com as próprias mãos, e humedecia os lábios dos moribundos com goles de água. […] O pobre desgraçado a quem desprezamos, para quem não podemos sequer olhar, e cuja visão revira o estômago, é humano como nós; é feito do mesmo barro que nós; é formado pelos mesmos elementos. Tudo o que ele sofre, nós também podemos sofrer. Consideremos as suas feridas como se fossem nossas, e então toda a nossa insensibilidade ao sofrimento alheio cederá, diante da nossa piedade por nós mesmos" (JERÓNIMO, Ep. LXXVII,4).

Toda esta evolução (de que faz parte também o texto de S. Thomas More ao apontar-nos um lugar ideal) é, no cristianismo e numa civilização por ele animada, fruto da afirmação de S. Paulo que acabámos de escutar na Iª Leitura (e a que poderíamos acrescentar muitas outras passagens do Novo Testamento): "Deus reconciliou-vos consigo pela morte de Cristo no seu corpo de carne, para vos apresentar diante dele santos, puros, e irrepreensíveis" (Col 1,22).

Foi na carne de Cristo que fomos reconciliados com Deus, diz S. Paulo. A salvação cristã nunca foi reduzida a uma dimensão meramente espiritual. Ao morrer na cruz; ao sofrer a morte no seu corpo de carne, Cristo assumiu todos os nossos sofrimentos e, na sua carne, a todos salvou.

A salvação não é, portanto, apenas uma realidade espiritual. Tem a ver com todas as dimensões do ser humano e, portanto, também com a sua carne. O corpo ressuscitado de Jesus traz consigo as marcas da cruz, como experimentou S. Tomé ao colocar as mãos no lado aberto do Senhor. Cristo ressuscitado tem fome e partilha a refeição com os Apóstolos. E isso mesmo celebramos na Solenidade da Assunção de Nossa Senhora ao Céu, ressuscitada em corpo e alma, participante em corpo e alma da glória de Deus. É o homem todo que será, no final, assumido por Deus.

Foi, precisamente, a consideração séria da carne de Cristo, Deus feito Homem, e da salvação que Ele nos oferece, que permitiu a tantos autores cristãos falar de Cristo "medicus et infirmus" (médico e enfermo, paciente). Médico do corpo e do espírito. Salvador do homem todo e de todos os homens. Foi do reconhecimento da presença de Jesus em todos os que sofrem que surgiu o movimento de criação dos hospitais enquanto lugares dedicados ao acolhimento dos doentes, tal como hoje os conhecemos.

Não temos aqui espaço para recordar os diferentes passos da história da criação e desenvolvimento dos hospitais, e da sua passagem de lugares de tratamento de doentes para lugares de promoção da saúde e de conhecimento científico. Bastem-nos estes acenos para podermos afirmar a dimensão cristã e salvífica que os hospitais possuem, a todos os níveis. Eles são, por excelência, lugares de salvação do corpo e do espírito — lugares de salvação do ser humano. Eles são lugares por excelência do encontro do ser humano com Jesus salvador — encontro possível graças à carne de Cristo.

Hoje e nesta celebração, comemoramos os 50 anos deste nosso Hospital Central Dr. Nélio Mendonça. Queremos dar graças a Deus por todos quantos aqui foram tratados e cuidados; por todos os profissionais que nele trabalharam e trabalham; pela promoção da saúde dos madeirenses que ele significou e significa.

Agora que, 50 anos depois da sua inauguração, sabemos que ele será felizmente substituído por uma nova unidade hospitalar, já em construção, queremos pedir a Deus que não nos deixe nunca esquecer a "utopia do Hospital" — humano, onde todos possam ser humanamente atendidos, e onde todos possam encontrar todos os recursos possíveis que ajudem a resolver os seus problemas de saúde — e, obviamente, onde todos possam ser acompanhados naquele momento definitivo de encontro com o Deus misericordioso e justo, Senhor e fonte da vida, que nos convida a partilhar plenamente da sua alegria infinita.

+ Nuno, Bispo do Funchal