2 fev. Homilia no Dia do Consagrado
DIA DO CONSAGRADO
Catedral Funchal
2 de fevereiro de 2020
Sentinelas de um mundo novo
1. Mais que a celebração do nascimento de um homem excepcional, as solenidades do Natal do Senhor ("a festa", como nós madeirenses gostamos de dizer) celebram o encontro entre Deus e o homem, no homem e no Deus que é Jesus de Nazaré. Em Jesus, Deus vem ao nosso encontro: ao encontro de toda a humanidade e ao encontro de cada um de nós.
Como que prolongando esse encontro e preparando o tempo da Quaresma que já se aproxima, celebramos hoje a apresentação de Jesus no Templo: o Menino Deus vai ao encontro do Templo de Jerusalém, Ele que é o verdadeiro Templo de Deus, onde Deus e o homem se unem. Conduzido por Maria e José, Jesus vai ao encontro da história de Israel, Ele que realiza plenamente as promessas divinas feitas ao povo eleito. Mas Jesus vai também ao encontro de quantos o esperam, Ele que realiza todas as esperanças da humanidade. E vai ainda ao encontro da vontade do Pai, Ele que é obediente e que, na obediência àquela vontade, encontra o seu verdadeiro alimento. Feito homem, Jesus vai ao encontro da cruz - aquela espada, preanunciada pelo velho Simeão como trespassando o coração da Virgem Mãe, e que é resultado da sua entrega, da sua total e definitiva consagração.
Em Jesus, o Pai é tudo. Ele existe com os ouvidos, os olhos e o coração sempre voltados para o Pai, totalmente consagrado ao Pai e ao cumprimento da sua vontade - o mesmo é dizer: completamente dedicado a realizar aquele desígnio divino de que nenhum se perca e que a salvação de cada um e de todos os homens possa ser uma realidade.
2. Não espanta, portanto, que, por iniciativa de S. João Paulo II, a presente festa da Apresentação do Senhor, da sua consagração no Templo de Jerusalém de acordo com os costumes judaicos, tenha sido, de há 24 anos a esta parte, celebrada também como o Dia do Consagrado.
Por isso nos quisemos reunir hoje nesta catedral, grande parte dos consagrados que vivem na Ilha, fazendo nossos os três objectivos com que aquele Santo Papa iniciou a celebração destas jornadas. Ou seja: rezar pelos consagrados, dando graças a Deus por eles e pelos carismas que o Espírito Santo sempre faz nascer na Igreja e no mundo; proporcionar o conhecimento e estima dos diferentes carismas que os consagrados vivem na vida da Igreja; e proporcionar a cada consagrado a renovação livre e entusiasmada da sua própria consagração.
Mas, a estes três objectivos, queremos nós acrescentar ainda um outro: dar graças a Deus por tudo quanto os consagrados, de há 600 anos a esta parte, têm significado (e continuam a significar) para as nossas Ilhas da Madeira e Porto Santo.
Hoje queremos, sobretudo, dar graças a Deus. Dar-lhe graças pela vida consagrada em geral e por aquilo que os consagrados, nas suas várias famílias religiosas - da vida monástica às congregações religiosas, dos Institutos seculares às novas formas de vida consagrada -, significam para o presente da nossa Igreja diocesana.
A nossa diocese teria um rosto absolutamente diferente, não fora a presença, desde o início do seu povoamento, de tantos consagrados que acompanharam as primeiras populações de colonos, que partilharam de perto a sua vida (as suas dificuldades, sofrimentos e alegrias), que lhes prestaram assistência espiritual, que lhes marcaram a alma e a vida, e que se deixaram também marcar pelos ritmos da vida de todo o nosso povo.
Foram eles, para além disso, que quando o poder central quase ignorava as nossas gentes, lhes minoraram as dificuldades nos domínios da saúde e da educação. E ainda hoje a presença de tantos consagrados marca, de modo indelével, a nossa vida de madeirenses e portosantences. Estamos por isso muito gratos a todos os consagrados presentes na nossa diocese por tudo quanto fizeram e fazem.
3. Contudo, mais que pelo fazer, um consagrado marca por aquilo que é. Melhor: marca pela sua vida totalmente entregue, consagrada. Marca na medida em que conseguimos perceber nele os traços de Jesus - casto, pobre e obediente ao Pai.
Cada consagrado é, com efeito, uma memória viva do modo de viver de Jesus. Dito de outra forma: é o baptismo levado à sua radicalidade. É o ser de um baptizado, completamente enamorado de Deus, que descobre nesta sua consagração de vida (humana e cristã) o sentido da sua existência. É o modo de viver a consagração baptismal em que um cristão procura imitar o mais fielmente possível "a forma de vida que o Filho de Deus abraçou ao vir ao mundo para fazer a vontade do Pai", como diz o Concílio Vaticano II (LG 44).
Compreendemos, assim, como, apesar dos diferentes carismas, que deram origem a diferentes famílias e instituições, aparecidos em diferentes tempos, a vida consagrada encontre o seu início no próprio Senhor Jesus e que seja reconhecida como absolutamente essencial à própria vida da Igreja.
Os consagrados são, portanto, um dom que o Espírito Santo faz à Igreja e ao mundo. Em cada consagrado queremos ver - nós, os cristãos, mas também o mundo em geral - o rosto de Cristo pobre, obediente e casto, a viver ao nosso lado. É um modo divino de viver, porque é o modo de vida de Jesus.
Por isso - afirma uma teóloga contemporânea[1] -, vivendo hoje (e assim radicalmente) o modo de viver de Jesus, os consagrados não podem deixar de assumir uma missão profética na Igreja e no mundo. Não tanto devido à atitude de denúncia ou de crítica quanto, sobretudo, pela sua obediência à Palavra de Deus, pela sua comunhão de vida e pela procura constante da vontade do Pai.
Assim, cada consagrado é uma sentinela que acorda o mundo. Acorda-o com o testemunho credível da sua alegria, fundada na certeza do amor de Deus. Acorda-o com o seu testemunho de comunhão, de vida fraterna em comunidade, capaz de ultrapassar o egoísmo, o isolamento e a solidão que tanto marcam o mundo contemporâneo. Acorda-o como sinal constante da procura obediente de Deus e da sua vontade, imprimindo à sua vida e à vida da sua comunidade o sinal do definitivo divino.
Sentinelas de um mundo novo e definitivo - aquele em que Deus e o homem se encontram, e em que o ser humano encontra a vida plena, feliz e perfeita: isto vos pedimos a cada um de vós; isto esperamos de cada consagrado, de cada instituto e de cada congregação que vive, louva e serve a Deus nesta nossa Ilha.
Enquanto agradecemos ao Senhor o dom que sois para a nossa diocese, pedimos-Lhe também que vos ajude a viver sempre de modo radical a vossa consagração. O mesmo é dizer: pedimos ao Senhor que vos ajude a ser hoje sentinelas do mundo novo que é o Reino dos Céus.
+ Nuno, Bispo do Funchal
[1] Mary Melone, "I consacrati e le consacrate: quale valore e quale senso...", in Orientamenti pastorali 12/2019, 38-47.