Homilia nos Fiéis Defuntos

02-11-2019

COMEMORAÇÃO DOS FIÉIS DEFUNTOS

2 Novembro 2019

(IIIª Missa)

"Estaremos sempre com o Senhor" (1Tess 4,17) dizia-nos S. Paulo no final da IIª leitura que acabámos de escutar. Essa é a certeza que ilumina toda a nossa vida cristã e que, por isso mesmo, nos oferece luz para respondermos às tantas interrogações que a morte sempre nos coloca.

A realidade da morte; a certeza de que todos, um dia, havemos de experimentar esse momento único (por muito que, num futuro mais ou menos próximo, a tecnologia nos consiga fazer viver 200 ou 300 anos); a certeza de que também aqueles que nos são mais queridos hão-de viver esse momento, sem que os possamos acompanhar; a certeza de que havemos de atravessar essa fronteira sozinhos, ainda que nesse mesmo instante outros morram ao nosso lado; a incerteza acerca do que se encontra para lá desse limite; a possibilidade (sempre presente) de aniquilamento total do que somos - são apenas algumas das muitas interrogações que a morte humana nos coloca.

E, no entanto, a morte, por muito certa que seja, continua a aparecer-nos como uma contradição com o nosso viver e com o nosso querer viver para sempre. A morte entra em contradição com a luta do quotidiano: para quê lutar se havemos de morrer? - e, no entanto, continuamos a lutar! A morte entra em contradição com o trabalho diário e o sonho por um mundo melhor: para quê sonhar e trabalhar se havemos de morrer? - e, no entanto, não podemos deixar de trabalhar e de sonhar!

A vida humana contradiz a morte e aquilo que parece ser a sua vitória final! A morte é uma realidade que não nos aparece como natural; um momento sempre inconveniente e triste; uma realidade à qual nos recusamos a dar de bandeja a vitória e a reconhecer a nossa derrota. A morte é algo que a vida, que o ser humano se recusa a aceitar.

É por isso que, para além da certeza da morte e das questões que ela nos coloca, não podemos nunca abandonar a procura acerca de alguma outra certeza que ilumine todo esse drama, toda essa luta humana. E a afirmação de S. Paulo que acabámos de escutar é uma luz verdadeira que, nos ajuda a viver a vida e a morte numa outra perspectiva, sem apagar o drama e as interrogações que, quer uma quer outra, nos colocam. Que nos ajuda a viver tudo isto numa perspectiva cristã.

Aos cristãos da cidade grega de Tessalónica, que o tinham interrogado acerca deste tema, o Apóstolo S. Paulo, longe de fugir à questão, aponta um caminho, uma resposta: "estaremos sempre com o Senhor".

Com efeito, o dado primeiro da vida cristã - de qualquer vida cristã - é este: estamos com o Senhor. O baptismo (seja ele celebrado nos primeiros momentos da vida, seja celebrado depois em adulto) o baptismo constitui uma verdadeira mudança na nossa existência: passamos a estar, a viver com o Senhor.

É que, no baptismo, não se trata de inscrever alguém numa religião - como se o cristianismo e a fé fossem comparáveis à escolha de um clube de futebol ou de um partido político! No baptismo trata-se de recebermos uma outra vida; trata-se de renascermos, de nascermos a partir de Deus (cf. Jo 3,1-21). Trata-se de acolher em nós uma nova realidade, mesmo que esta seja invisível a olho nu: trata-se de acolher a vida de Deus em nós. Verdadeiramente, quando alguém é baptizado, o Senhor passa a estar com ele.

Sabemos que a questão não é, obviamente, de ter mais ou menos sorte; de deixar de ter problemas de saúde ou de sermos apenas sujeitos a doenças de menor gravidade... A questão é antes de uma vida verdadeiramente nova e diferente. O mesmo Apóstolo Paulo di-lo expressamente noutro lugar: "todos quantos em Cristo fostes baptizados, de Cristo vos revestistes. Não há judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus" (Gal 3,27-28).

Esta é a maravilha de sermos cristãos: vivemos em Cristo. Quando somos baptizados, somos revestidos de Cristo. A graça de Deus passa a actuar em nós e nunca nos abandonará - somos nós quem a pode abandonar!

É esta certeza que transforma o nosso viver. É esta certeza que transforma o nosso morrer. É esta certeza que nos convida a morrer constantemente para o homem velho (como diz tantas vezes S. Paulo), para vivermos para o homem novo e com o homem novo que é Jesus Cristo.

Mas se Cristo ressuscitou; se Ele venceu a morte, então também nós, que vivemos unidos a Ele, também nós a vencemos - não por causa das nossas forças ou capacidades, mas por causa da vitória de Cristo sobre o pecado e a morte.

Recordemos ainda S. Paulo, agora na Carta aos Romanos: "Porque nenhum de nós vive exclusivamente para si, e nenhum de nós morre apenas para si mesmo. Se vivemos, vivemos para o Senhor; e, se morremos, é para o Senhor que morremos. Sendo assim, quer vivamos ou morramos, pertencemos ao Senhor. Foi por este motivo que Cristo morreu e voltou a viver, para ser o Senhor tanto de vivos como de mortos" (Rom 14,7-9).

"Estaremos sempre com o Senhor". Essa é a certeza que constrói o cristão. Essa é a certeza com a qual o cristão vive todas as fronteiras, também aquela da morte. Essa é a certeza, a certeza da fé. Na vida, na morte e na vida depois dela, estaremos sempre com o Senhor. E isso nos basta.

Viveremos com Ele plenamente no Céu, na comunhão plena dos santos, se a nossa liberdade Lhe der já agora, neste mundo, o espaço pleno. Continuaremos a caminho, deixando que Ele nos purifique (o Purgatório), se agora, nesta nossa vida, continuarmos naquela indecisão dramática, que todos os dias percebemos em nós, ora vivendo com Ele, ora ignorando-o - ou, para recordar ainda S. Paulo: o bem que queremos não o praticamos, enquanto que o mal que queríamos evitar, esse é que realizamos (cf. Rom 7,19). E viveremos a dor terrível (que Ele nos livre de assim existirmos!) do afastamento dele e dos irmãos, no Inferno, se a nossa liberdade Lhe voltar definitivamente as costas e não for capaz de se reeguer, recusando sistematicamente os dons da graça divina.

Como quer que seja, a questão será sempre a de estar ou não com o Senhor.

Se ontem, na Solenidade de Todos os Santos, louvávamos o Senhor pelas maravilhas que realizou e realiza através dos Santos, daqueles que lhe pertenceram plenamente já nesta vida, hoje, na Comemoração dos Fiéis Defuntos, pedimos-Lhe - nós que ainda vivemos e caminhamos neste mundo - pedimos-Lhe que nos mostre a sua misericórdia. E pedimos também por todos e para todos os que morreram em Cristo e a Ele pertenciam e já partiram, que Ele se lhes mostre como Juiz misericordioso, a todos purifique das suas culpas, e a todos acolha na glória eterna.

+ Nuno, Bispo do Funchal