Homilia no dia do Advogado

19-05-2020

DIA DO ADVOGADO

Sé do Funchal, 19 de Maio de 2020

Leituras:

Sir 3,19-26

Sl 18b

Mt 5,13-19

"É grande o poder do Senhor, e os humildes cantam a sua glória" (Sir 3,20)

As leituras que acabaram de ser proclamadas constituem, antes de mais, um poderoso convite a que tenhamos a coragem de nos colocarmos diante de Deus e de, assim, vivermos a virtude da humildade.

Poderíamos, à primeira vista, julgar que se trata, simplesmente, de enunciar uma qualquer norma de sabedoria humana em favor da humildade, ou mesmo em favor de uma falsa humildade - daquela atitude de quem, querendo sobressair acima dos demais, se serve de uma estratégia simples para fazer ressaltar aos olhos dos outros um abaixamento artificial e falso.

Ou, então, de uma atitude já ultrapassada, a humildade, que nos nossos dias passa por momentos bem difíceis: na publicidade, dizemos que aquilo que queremos vender é muito melhor que os produtos concorrentes; na política, fazemos sobressair as qualidades do candidato próprio, enquanto os rivais são enxovalhados tanto quanto possível; e mesmo no desporto os comentadores não hesitam em exaltar a equipa que entrou em campo "com arrogância".

Duas atitudes, estas, aparentemente nos antípodas uma da outra, e que (eventualmente) nos convidariam a procurar o meio-termo - onde, é comum dizer, se encontra a virtude. Mas também esta procura, esta não rara "obsessão" pelo morno, sem-sabor e sem brilho, jamais poderá constituir, por si só, uma verdadeira virtude - pelo menos uma virtude cristã, porque o cristão tem na raiz da sua existência um princípio indiviso: o amor total do único Deus.

É que, no fundo, todas estas atitudes falham no seu próprio início. Com efeito, todas elas surgem de uma estratégia meramente humana, mesmo psicológica, e porventura inconsciente, de quem se deseja afirmar e sobressair perante os demais: pela sua falsa humildade, pela sua arrogância ou pela sua moderação. Nenhuma delas surge de um confronto fundamental que todo e qualquer ser humano é sempre convidado a fazer: o confronto quotidiano com Deus.

Quando dizemos - e bem - que Deus sempre nos acompanha, que Ele nunca nos deixa sós, raras vezes pensamos (e, muito menos, aceitamos) as consequências dessa presença. Claro que é bom que Deus nos acompanhe. É essencial tê-Lo ao nosso lado, perceber o seu poder e a sua força protectora mas que nunca nos retira a responsabilidade. Contudo, este Deus nosso criador - a quem Jesus nos ensinou a tratar por Pai, por "Papá", com a ousadia só aceitável às crianças de tenra idade - este Deus faz-nos, no mesmo preciso momento em que se mostra como Salvador, perceber igualmente que cada um de nós (e que o todo da humanidade) não é Deus. Somos criaturas e não o Criador. Somos frágeis e dependentes. Somos realmente livres mas com uma liberdade finita.

Não existe humildade verdadeira e virtuosa sem a consideração constante do amor com que o Pai nos surpreende e a que sempre podemos e devemos recorrer; e, simultaneamente, sem a consideração da diferença essencial que nos coloca no nosso lugar e nos faz perceber a nossa condição humana.

Porque a humildade é precisamente o fruto destas duas realidades: o quanto somos diferentes de Deus e o amor infinito que o Pai nos tem. Por isso, a humildade não é nunca humilhante: ao mesmo tempo que consideramos a distância que nos separa de Deus, a nossa pequenez e as nossas limitações, somos impedidos de esquecer a dignidade com que o Criador dotou todo e qualquer ser humano, o amor criador de um Deus que nos pensou e quer, a cada um de nós, por si mesmo - e, no caso dos baptizados, a nossa qualidade única de filhos no Filho.

E, no entanto, a verdade do que somos impede-nos de ficarmos com o reconhecimento apenas devido ao próprio Deus, como Jesus convida os seus discípulos: "Quando tiverdes feito tudo o que vos foi ordenado, dizei: somos servos inúteis; fizemos o que devíamos fazer" (Lc 17,10). Como que dizendo: "Não fizemos mais que a nossa obrigação".

A virtude da humildade - quer dizer, a humildade vivida como hábito, vivida de um modo espontâneo e permanente como característica de uma existência - impede-nos a nós e a qualquer outro (que não seja o próprio Deus) de receber a recompensa: "para maior glória de Deus", era o lema de Santo Inácio de Loiola, convidando os seus a tudo fazerem apenas para maior glória do Criador. Ou, usando as palavras do evangelho há pouco proclamadas: "Brilhe assim a vossa luz diante dos homens, para que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem o vosso Pai que está nos céus" (Mt 5,16).

Santa Teresa de Jesus, essa grande mística e doutora da Igreja do século XVI, resumiu o que seja a humildade numa frase lapidar: "Humildade é andar na verdade diante de Deus, dos demais e de nós mesmos" (M VI 10,7).

Que tem a virtude da humildade a ver com o direito e o exercício da advocacia? Convenhamos que, à partida, quase parecem realidades contraditórias. E no entanto, creio que ambas se encontram precisamente na procura e vivência da verdade.

Com efeito, podemos dizer que o direito é a procura de tradução da verdade no ordenamento das relações entre os seres humanos, de modo que a cada um lhe seja dado o que lhe compete; e que a verdade, procurada e vivida, é a realidade sem a qual nos arriscamos a cair na arbitrariedade do mais poderoso - o mesmo é dizer: na negação do próprio direito.

Peçamos pois ao Senhor a graça da humildade, que o mesmo é dizer: a graça da verdade e da rectidão, sempre conscientes do seu amor, e de como ele se expressa em cada ser humano - a humildade que nos faz caminhar procurando viver cada vez mais e melhor a verdade do que somos, diante de Deus, dos outros e de nós mesmos.

Santo Ivo, padroeiro dos advogados e juristas, interceda por todos, para que, na humildade, sejamos capazes de nos deixar construir, não a partir do egoísmo com que espontaneamente nos vemos, mas antes moldados pela verdade que sempre nos diz quem somos e como nos havemos de relacionar com os demais e com Deus.

+ Nuno, Bispo do Funchal