Homilia no Corpo de Deus

21-06-2019

SOLENIDADE DO SANTÍSSIMO CORPO E SANGUE

DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO

Funchal, 22 de Junho de 2019

Ano C

Largo do Colégio

"Anunciareis a morte do Senhor, até que Ele venha"

1. Encerradas as festas pascais com a Solenidade do Pentecostes, podemos agora deter-nos a contemplar e celebrar (particularmente nós, as "Ilhas do Santíssimo Sacramento") o Santíssimo Corpo e Sangue de Jesus - quer dizer: esta realidade sacramental que Jesus nos deixou e que nos mandou (a nós, seus discípulos) que celebrássemos até Ele regressar colocando fim à história.

Até esse momento - "até que Ele venha", dizia S. Paulo, na sequência daquilo que o próprio Senhor afirmou na Última Ceia: "Não beberei mais do fruto da videira, desde agora, até àquele dia em que convosco o hei-de beber, novo, no Reino do meu Pai" (Mt 26,29) - até esse momento de plenitude, havemos nós, seus discípulos, de celebrar e nos alimentarmos com o Sacramento Eucarístico.

Entre estes dois banquetes (a Última Ceia de Jesus com os discípulos e o banquete escatológico, final, quando o mundo inteiro for entregue por Jesus nas mãos do Pai), vivemos a fé como peregrinos. E a Eucaristia - toda e qualquer celebração da Eucaristia - será sempre marcada por estas três realidades: memória (quer dizer: presença) da morte do Senhor e da sua última Ceia; antecipação do gozo em que nos será dado contemplar a Deus face a face; alimento sobreabundante de peregrino, força que nos transforma, presença de Deus que nos revigora, a nós, cansados caminheiros do Céu.

2. Mas, ao celebrarmos a Eucaristia, afirmava S. Paulo na IIª leitura, ao celebrarmos a Eucaristia, anunciamos também a morte do Senhor. Porque havemos nós de anunciar, constantemente, a morte do Senhor? Não é ela uma derrota (a derrota de Deus diante do pecado dos homens que se recusam a recebê-lo)?

Claro que a cruz é uma derrota. Claro que a cruz é uma falência. Tal como a morte humana (a morte de cada ser humano) é uma derrota, uma falência: é aquele momento em que já não somos capazes de viver; em que cessam as sabedorias humanas; em que todo o nosso poder se mostra fraco.

À morte, estamos nós, seres humanos, habituados: contamos com ela, faz parte do nosso viver. Mas não estamos habituados - como poderíamos estar? - à morte de Deus. Como poderia Deus sofrer a morte? Como poderia Ele estar sujeito à fraqueza, à impotência máxima, ao aniquilamento do seu ser? Quando os discípulos vêem Jesus que pende da Cruz, é natural que fujam, desanimados e sem sentido. Afinal, Aquele que comandava ventos e mares, Aquele que curava e que falava com a autoridade divina, perdoando os pecados; Aquele diante de quem não raras vezes sentiam o temor devido somente à presença de Deus, também Ele ali estava, pendendo do madeiro, sofrendo a caducidade humana, sujeito à maior agonia então imaginável. Que fazer, senão fugir? Que fazer, senão procurar o regresso ao quotidiano, e tentar que tudo não tivesse passado de um sonho transformado em pesadelo?

Mas a ressurreição do Senhor, aqueles encontros com o Ressuscitado que se seguiram ao dia de Páscoa; o olhar com os olhos de discípulos; o escutar com os seus ouvidos; o tocar o Ressuscitado com as próprias mãos; as refeições tomadas com Jesus ao longo daqueles 40 dias; a Sua presença gloriosa que vencia e ultrapassava todos os obstáculos: tudo isso conduziu os discípulos a um outro entendimento, a olhar para a cruz de um modo radicalmente diferente.

Que o homem morra é normal; mas que Deus sofra a morte, custa-nos, ainda hoje, entender - que Deus experimente o que é morrer; que Ele experimente a morte real, física e moral; que sofra o abandono dos seus, a solidão, o silêncio, a dor maior do abandono do Pai, para (por nossa causa) vencer a morte e nos dar a vida, a Sua vida - isso apenas poderá ter uma justificação: o amor divino, incomensurável, o amor maior e concreto por todos e por cada um: o amor definitivo. Ou, simplesmente, "o amor".

A morte de Jesus, longe de ser apenas uma morte injusta e sem sentido, mostrou e mostra ainda hoje a todo o que se deixar confrontar por ela, o quanto cada ser humano vale para Deus. Mostra como o amor divino pode ir longe - bem mais longe que qualquer sentimento, bem mais longe que qualquer poder humano, bem mais longe que qualquer desejo: é uma vontade (um querer divino!) de a todos chegar, de a todos oferecer a sua vida, de a todos convencer com o amor, de a todos oferecer a eternidade. A Cruz de Jesus Cristo é o lugar do amor. Neste Jesus que assim morre na cruz, conhecemos o que é o amor, sem fronteiras, sem limites - o amor que tudo pode porque não é fruto de uma fantasia ou de um sentimento vago, mas antes daquele querer divino, único a poder vencer a morte no seu próprio terreno.

Não nos espante, portanto, irmãos, que S. Paulo nos diga - a nós, discípulos que celebramos a Eucaristia, a nós que comungamos - que sempre que o fazemos anunciamos a morte do Senhor até que Ele venha! Anunciamos, verdadeiramente, a morte do Senhor. Somos seus anunciadores, seus pregoeiros; somos portadores da morte de Jesus, porque nela se mostrou o amor e a medida do amor: "longe de mim gloriar-me a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo" - afirmava S. Paulo noutro lugar (Gal 6,14). Na cruz de Jesus Cristo vem-nos ao encontro a vida que vence a morte; e no Crucificado somos surpreendidos pela grandeza do ser humano, a grandeza de cada um de nós; a grandeza que permanece sem que nada mais a possa destruir.

3. Sim, todas as vezes que comemos deste pão e bebemos deste cálice anunciamos a morte do Senhor - nós, discípulos peregrinos do Céu - até que Ele venha de novo na plenitude dos tempos. O mesmo é dizer: anunciamos o amor até ao fim; anunciamos o amor na sua medida mais alta e excelente; anunciamos o amor que vence efectivamente o ódio, a guerra, o egoísmo; anunciamos o amor que transforma o mundo (o único a poder transformar o mundo!).

Quando celebramos a Eucaristia, celebramos este Amor, único e total de Deus por cada um de nós e por todos; quando comungamos, recebemos em nós o Amor. Quando nos ajoelhamos diante do Santíssimo Sacramento, ajoelhamos diante do Amor. Quando abrimos o nosso coração num momento de oração silenciosa perante o Sacrário, abrimos o nosso coração ao Amor. E quando O mostramos à cidade, numa procissão jubilosa, mostramos a todos o Amor - aquele Amor de que todos os homens necessitam para ser, para viver, para resolver os seus problemas, para chegar à verdadeira e autêntica felicidade. Mostramos o Amor que é fonte de verdadeira comunhão.

Grande é a graça, irmãos, de poder olhar com os nossos olhos o Pão Eucarístico, e de contemplar o Deus morto e ressuscitado a dar-nos a vida. Grande é a graça de receber Deus nas nossas mãos, na nossa boca, no nosso coração: sim, Aquele que tudo criou e que nos criou a nós, num acto único de amor, está ali, nas nossas mãos, na nossa boca e no nosso coração. E pede que o comunguemos. Que o deixemos ser um connosco. Pede que O façamos nosso. Melhor: pede que a nossa vida seja sua, inteiramente sua.

E pede-nos, hoje, que o seu anúncio e as suas acções possam estar próximos, e interpelar, convidar - hoje como na Galileia de há 2000 anos - a todos aqueles que ainda não se encontraram com Ele, mas a quem Ele não desiste de procurar, de encontrar, de amar.

+ Nuno, Bispo do Funchal