Homilia no 3º Domingo de Páscoa
III DOMINGO TEMPO PASCAL (A)
26 de Abril de 2020
HOMILIA
"Ó insensatos e lentos de coração em acreditar em tudo o que os profetas disseram! Não era preciso que o Messias sofresse tudo isso e entrasse na sua glória?" (Lc 24,25-26).
A incompreensão dos discípulos diante de quanto Jesus dizia e fazia, diante do que Jesus anunciava sobre o Reino, o Pai e sobre si próprio, é uma constante nos evangelhos, em particular no evangelho de S. Marcos. Os discípulos têm dificuldade de entender. Recordemos apenas aquela passagem em que Jesus anuncia a sua morte e ressurreição: "Ensinava os seus discípulos e dizia-lhes: «O Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos homens; matá-lo-ão, e, tendo sido morto, três dias depois ressuscitará». Eles, porém, não compreendiam tal coisa e tinham medo de o interrogar" (Mc 9,31-32).
Os discípulos têm dificuldade em entender Jesus. Não porque Jesus não fosse um bom pedagogo. Não porque os discípulos não fossem suficientemente inteligentes. Mas porque estavam, simplesmente, naquilo a que hoje diríamos "diferentes comprimentos de onda". Jesus falava-lhes de Deus a partir de Deus; os discípulos pensavam como homens, e pensavam Deus a partir daquilo que os homens imaginavam ser Deus. A dificuldade estava, precisamente, nesta passagem, a que chamamos "conversão", em que deixamos de pensar e de viver a partir de nós e das nossas categorias, para pensarmos e vivermos a partir de Deus.
Para aqueles dois discípulos de Emaús - como para os demais discípulos, porque era desse modo que o judaísmo do tempo olhava para a sua história - era claro que a intervenção e a vinda do Messias tinham como objectivo "libertar Israel", após o que o mundo inteiro seria salvo: "Esperávamos que fosse Ele quem viria libertar Israel. Mas, com tudo isso, já faz três dias que estas coisas aconteceram!" (Lc 24,21). Não era simplesmente uma questão nacionalista. Era uma questão de salvação do mundo inteiro. Mas uma salvação que passava pela independência política e militar de Israel e, absolutamente, não passava pela cruz e pela ressurreição do Messias.
2. Todos os seres humanos pensam e imaginam Deus. De uma forma ou de outra, todos pensam saber o que seja Deus. Uns dizem que é um velho de barbas brancas, ultrapassado e perfeitamente dispensável para o mundo e para a nossa vida; outros que é uma energia ou uma luz; outros preferem antes falar de divindade ou de divindades. Uns falam do livro sagrado; outros falam da Lei como presença divina. E outros até pensam que Deus não existe e que não devemos contar com Ele.
Mas Jesus coloca-nos perante um convite bem diferente. Com Jesus, a questão não é a de mais uma teoria acerca de Deus. Com Jesus, é o próprio Deus que vem ao nosso encontro e se nos mostra. É o próprio Deus, em primeira pessoa, que nos convida a partilhar da sua vida (a André e ao outro discípulo de João Baptista que o tinham seguido e lhe tinham perguntado: "Onde moras?", Ele responde: "Vinde ver" - Jo 1,39). Com Jesus, Deus apresenta-se em primeira pessoa, e convida-nos a mudar o que pensamos, o que sabemos acerca dele a partir daquilo que Ele é, e não a partir das teorias e ideias que os homens imaginaram acerca de Deus.
E aquilo que Deus é, como Ele se nos mostra, como Ele quer ser conhecido, vivido, amado é, de um modo surpreendente, um acontecimento: a cruz e a ressurreição, a Páscoa. Nesse acontecimento histórico, diante de um Deus crucificado; diante de um Deus que vive o abandono, a solidão e a morte; diante de um Deus que experimenta a morte dos renegados e dos escravos, e que vence a morte para sempre, ressuscitando e dando-nos a vida; nesse acontecimento histórico, percebemos quem Deus é, e como quer ser entendido, pensado, vivido.
"Começando a partir de Moisés e de todos os Profetas, explicou-lhes, em todas as Escrituras, o que a Ele dizia respeito" (Lc 24,27). É aquele homem que partilha o caminho com os discípulos quem lhes vai abrindo a sua mente e o seu coração: "Não nos ardia o nosso coração quando Ele no caminho nos falava, quando nos abria as Escrituras?" (Lc 24,32).
E, no entanto, os olhos da fé daqueles discípulos (os deles como os nossos) só se abrem verdadeiramente na celebração da Eucaristia, quando o próprio Jesus toma o pão, pronuncia a bênção, o parte e o entrega. Nesse momento fez-se luz e eles perceberam a presença do Senhor, vivo e ressuscitado, que os havia de acompanhar sempre, ao longo do resto da sua vida, como os tinha acompanhado naquela viagem de Jerusalém para Emaús.
3. Como aqueles dois discípulos, também nós somos, não raras vezes, "insensatos e lentos de coração". Como os discípulos, também nós andamos, tantas vezes, à procura de Deus a partir daquilo que pensamos acerca dele, das nossas ideias (e, até, dos nossos desejos, sonhando que Deus vai confirmar e justificar tudo quanto fazemos, até o nosso próprio pecado). Não é assim. Se queremos encontrar Deus, havemos de nos dispor a aprender dele, a sermos por Ele conduzidos ao seu encontro. Havemos de deixar que Ele percorra connosco o caminho da nossa vida e da nossa história. Deus não estará naquilo que pensamos ou sonhamos acerca dele, mas naquilo que Ele é, e no modo como se mostrou ao mundo: na cruz de Jesus e na sua ressurreição.
Para o encontrarmos, precisamos que Ele nos abra o coração com a leitura das Escrituras, e que nos abra os olhos da fé com a Eucaristia. E precisamos também de partir, de regressar a Jerusalém para partilhar com os demais discípulos - quer dizer: com a Igreja - a alegria de termos encontrado o Senhor, vivo e ressuscitado, que mostrando-nos quem é Deus, não recusa partilhar verdadeiramente a nossa vida.
Não raras vezes - de um modo particular nesta situação de confinamento e de sofrimento - também nós julgamos que Deus nos abandonou. Na dureza da nossa vida, pensamos que se esqueceu de nós.
Pensamos que Deus nos abandonou porque não correspondeu aos nossos pedidos e às nossas expectativas. Falta-nos deixar que Ele caminhe connosco, nos explique as Escrituras para que o nosso coração arda com o fogo do Espírito; e que Ele celebre connosco a Eucaristia, para que se abram os nossos olhos da fé.
Disponhamo-nos, com toda a sinceridade do nosso coração, a que Ele partilhe connosco a nossa existência, a ilumine e transforme. De um modo particular, disponhamo-nos a recebê-lo nesta Eucaristia.
Temos, tantas vezes, dificuldade em entender Deus. Em perceber aquilo que Ele nos pede. Em viver os seus desígnios. Em fazer a sua vontade.
Nesta celebração da Eucaristia, deixemos que o Senhor esteja verdadeiramente connosco, ao nosso lado. Deixemos que Ele celebre connosco, que Ele esteja presente em nossas casas, no seio da nossa família, e nos abra o coração para O acolher.
+ Nuno, Bispo do Funchal