Homilia nas Ordenações

31-07-2021

ORDENAÇÕES

Catedral do Funchal, 31 de Julho de 2021

Leituras:

Jer 1,4-9

2Cor 4,1-2.5-7

Jo 15,9-17

"PONHO AS MINHAS PALAVRAS NA TUA BOCA"

1. Ao ser humano, só Deus pode bastar. Não são suficientes as conquistas, o poder, a transformação do mundo. Há dentro de nós - de todos nós - uma sede insaciável, uma irrequietude que não admite ser ignorada.

Cada um de nós é um irrequieto que procura. Podemos procurar num desespero de sentido, em leituras intermináveis; podemos procurar nas loucuras mais ou menos adolescentes de quem infringe as regras sociais ou legais; podemos procurar na voragem da necessidade de chegar ao topo de uma carreira; podemos procurar na sede de dinheiro, de fama ou de poder; podemos procurar de tantos outros modos... caminhos errados, becos sem saída, que desgastam o ser humano ou mesmo o aniquilam. Mas todos esses percursos se resumem em procuras humanas duma plenitude; em querer ultrapassar os limites confrangedores do nosso ser criatura, para buscarmos algo de divino: mostram uma sede do eterno e do infinito que, sabemos por experiência, apenas Deus pode oferecer, garantir, saciar.

Basta ler as Confissões de Santo Agostinho para nos darmos conta de como essa procura, de um ou outro modo, anima o simples viver do quotidiano. E, para além de Agostinho, poderíamos evocar tantos outros nomes: o de Justino e da sua procura da Verdade; o de Inácio de Loiola e da sua procura da fama; ou o nome de quantos começaram por querer ignorar a procura; dos que erraram o caminho; e dos que encontraram Jesus Cristo e a plenitude do humano que Ele oferece.

O filósofo e mártir Justino, no séc. II, narrava assim a sua conversão, depois de uma longa procura: "No que me diz respeito, um fogo se ateou naquele momento na minha alma, fui tomado pelo amor dos profetas e daqueles homens que são amigos de Cristo: reflectindo comigo sobre os seus discursos, achei que esta era a única filosofia certa e salvadora" (Trif. 8,1).

E Agostinho: "Amanhã, amanhã? Porque não há-de ser agora? [...] Assim eu falava e chorava, oprimido pela mais amarga dor do coração. Eis que, de súbito, oiço uma voz vinda da casa próxima. Não sei se era de menino, se de menina. Cantava e repetia frequentes vezes: Toma e lê; toma e lê. [...] Levantei-me, persuadido de que Deus só me mandava uma coisa: abrir o livro, e ler o primeiro capítulo que encontrasse. [...] Não quis ler mais nada, nem era necessário. Apenas acabei de ler estas frases, penetrou-me no coração uma espécie de luz serena, e todas as trevas da dúvida fugiram" (Conf. VIII,12).

Mais à frente, o mesmo Agostinho resume esta procura humana: "A vida feliz consiste em nos alegrarmos em Vós, de Vós e para Vós. Eis a vida feliz, e não há outra. Os que julgam que existe outra, apegam-se a uma alegria que não é verdadeira. Contudo, a sua vontade jamais se afastará de uma certa imagem de alegria..." (Conf. X,22).

2. Seria impensável - indigno de Deus e indigno do ser humano - que no seio de cada um habitasse esta procura tão radical, e a todos não fosse dado conhecer quem a pode saciar: Jesus Cristo, Aquele que vive plenamente a verdade do humano, em quem o homem verdadeiro coincide com o Deus verdadeiro. Ele é o único a poder saciar esta procura: "Disse-vos estas coisas, para que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja completa", acabámos de escutar.

Aquilo que hoje, nesta Catedral, estamos a viver é, por isso, um acontecimento de salvação. É-nos dado viver a plenitude da alegria: aquele momento pascal de coincidência perfeita entre o Homem e Deus, aquele instante que resume o drama da humanidade e, ao mesmo tempo, resume também a resposta perfeita de Deus a todas as procuras humanas. Esse acontecimento, Jesus de Nazaré, envolve-nos hoje também a nós, por muito distantes no tempo e no espaço que possamos estar. Para Deus (só para Ele) não há longe nem distância. Hoje, a Páscoa de Jesus toma conta da nossa vida.

De um modo particular, a Páscoa de Jesus toma conta da vossa vida, caríssimos ordinandos, ainda que de modos diferentes. Toma conta dela para a transformar em pascal presença quotidiana; para a transformar no seu sacramento, de tal modo que, também de vós, podem e devem ser ditas, com toda a verdade, as palavras dirigidas ao profeta: "Eu ponho as minhas palavras na tua boca" (Jer 1,9).

Guardado e transportado pelo vaso de barro que é cada um de vós, eis que vos é entregue o tesouro da presença divina no meio da Igreja, no meio do mundo. Tesouro não apenas para vós mas para o mundo inteiro - mesmo até para aqueles que não têm disso consciência.

Que vos é pedido? Que missão vos é confiada? Em primeiro lugar, a missão de mostrar a todos que a sede que experimentam é sede de Deus. É a missão de inquietadores do mundo contemporâneo, também assim poderíamos dizer. De agitadores das águas quietas deste nosso mundo que não raro nos procura reduzir todos a "fotocópias" de astros, de ídolos, de homens elevados à categoria de deuses. É que, não raras vezes, a sede corre o risco de se perder em si mesma, esquecendo-se de procurar a fonte: "eles não sabem que não sabem", dizia alguém, diante da vida de tantos contemporâneos.

Mas, depois, a missão é também a de mostrar a todos a resposta que o próprio Deus nos oferece em seu Filho, Jesus Cristo. "Não nos pregamos a nós próprios, mas a Cristo Jesus, o Senhor" (2Cor 4,5), afirmava o Apóstolo na 2ª leitura. E o mesmo Paulo tinha antes afirmado e especificado o lugar da resposta: "Eu mesmo - escreve ele na 1ª Carta aos Coríntios - quando fui ter convosco, irmãos, não me apresentei com o prestígio da palavra ou da sabedoria para vos anunciar o mistério de Deus. Pois não quis saber outra coisa entre vós a não ser Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado" (1Cor 2,1-2).

Saber e anunciar, viver de Cristo crucificado. Este é, aliás, o segredo de uma vocação e da vida sacerdotal. Deixámos de nos pertencer, para que Cristo crucificado se possa tornar presente: "Somos vossos servos por causa de Jesus", afirmava S. Paulo.

Esta é a única realidade que nos importa saber e viver, a partir do momento sacerdotal da nossa ordenação. Porque, de verdade, dela brota tudo mais, e ela tudo ilumina com uma nova luz. No rosto de Cristo - é ainda uma afirmação que escutámos do Apóstolo - reflete-se todo o esplendor da glória de Deus e, quando pregamos a Cristo, esta luz brilha nos nossos corações (cf. 2 Cor 4,6).

Nesta presença que é sempre anúncio, pregação, encontramos a alegria completa, aquela que o Senhor oferece aos que escolheu e enviou e a todos os que se dispõem a acolhê-la.

Poderíamos nós negar a alegria completa aos nossos irmãos? Poderíamos nós recusar dar nome, oferecer o rosto que responde à procura humana? Que serviço maior e melhor pode alguém encontrar como entrega total à vida dos irmãos?

A todos deve chegar o rosto de Cristo: não o rosto daquele que se imaginaram para si ou que o mundo criou e teimosamente quer impor, mas o rosto do Crucificado, porque é na cruz (e só nela) que aquele rosto se revela com toda a sua beleza.

Brilhe a luz de Deus - que o mesmo é dizer: Cristo - na vossa vida, na vossa pregação, no modo de celebrar os sacramentos, quando vos aproximardes de alguém, quem quer que seja. Enfim: brilhe o Crucificado no vosso modo de viver e de ser. O mundo que procura e ainda não encontrou o rosto de Cristo, anseia pelo vosso ministério. Que o mesmo é dizer: anseia pela alegria completa que fazeis presente, e que apenas Cristo pode oferecer.

+ Nuno, Bispo do Funchal